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Políticas culturais em Moçambique após a abertura à economia de mercado

Em 1992 é assinado o Acordo Geral de Paz em Roma e a Frelimo assume a direção de um país com graves problemas ocasionados pelos horrores da guerra. Foram notórios em Moçambique, os ataques a bens e equipamentos de serviços básicos à população, como escolas, hospitais, e rodovias. Segundo dados do Banco Mundial, o Produto Interno Bruto moçambicano de 1992 era de 1.97 bilhões de dólares. Como não poderia deixar de sê-lo, a carência em estrutura institucional e física se apresenta no campo da gestão pública de cultura.

Em 1992 é extinto o anterior Ministério da Cultura, e criado o Ministério da Cultura e Juventude (MCJ), tendo como estrutura as Direções Nacionais do Patrimônio Cultural; de Ação Cultural; além de órgãos de administração, coordenação, cooperação internacional e finanças. A despeito de este ser um momento impar na organização Estatal do país, é importante frisar que a reorganização do espaço da cultura no aparelho Estatal aparenta ser constante no governo Moçambicano. Entre a independência do país em 1975 até 2011, o Estado alocou a Cultura em oito diferentes órgãos Estatais24, sendo cinco dessas mudanças entre 1992 e 2010, data da instituição do Ministério da Cultura vigente até o momento. As razões destas mudanças não parecem claras25, contudo pode-se aferir que a instabilidade institucional tenha repercutido negativamente no andamento da gestão das instituições culturais estatais do país, devendo adaptar-se a cada momento a uma nova estrutura do governo central.


O período de 1992 a 1996 foi extremamente rico na regulamentação e criação de equipamentos e órgãos culturais. Nestes quatro anos, entre Decretos (deliberados essencialmente pelo Conselho de Ministros), Diplomas Ministeriais (deliberados pelos Ministério), e Leis foram aprovadas normatizações nas seguintes áreas (MOÇAMBIQUE, 2007): i) Patrimônio – com a normatização de instituições sobre Patrimônio Cultural, Patrimônio Arqueológico e Museu de Etnologia; ii) Formação e pesquisa – em música, dança, artes visuais, canto e na criação de um órgão regulamentador das bibliotecas; e iii) Mercado cultural – com regras sobre audiovisual e a Lei do Mecenato.

Todos os órgãos então instituídos existem e continuam ativos com algumas alterações em nomes e atribuições. É notória a centralidade de políticas de patrimônio, e a tentativa de estruturar instituições de educação superior para a formação de quadros formados em linguagens artísticas que compusessem tanto órgãos administrativos quanto enredassem pela carreira docente em instituições de ensino em todos os níveis. A Lei do Mecenato foi aprovada em 1994, estabelecendo princípios básicos para iniciativas de pessoas jurídicas, singulares ou coletivas, públicas ou privadas em apoios financeiros e materiais ações no campo das artes, letras, ciência, cultura e ação social. Entretanto até os dias de hoje não foi consolidado um órgão que operacionalizasse a Lei, estabelecendo critérios e realizando a mediação entre produtores culturais e potenciais financiadores26.

O Ministério da Cultura, Juventude e Desportos, embora não tenha sido nunca aprovado, transcorre de 1996 a 2000. Curiosamente neste ínterim foi aprovada a Resolução nº 12/97, que estabelece uma “Política Cultural de Moçambique e Estratégia de sua Implementação”. Este é o único documento do gênero produzido até os dias de hoje. O documento afirma a política cultural como “um instrumento que regula a atividade do Governo na sua articulação com os demais intervenientes na promoção e desenvolvimento da cultura” (MOÇAMBIQUE, 97, p.39). A Política contempla estratégias de implementação e fundamenta as linhas sobre políticas culturais de diversas normativas ulteriores, ainda que os avanços na sua implementação aparentem ser modestos e lentos.

Logo da Definição o documento atribui relevância a aspectos da diversidade cultural no âmbito da gestão em cultura, tal como apresentado a seguir. Na sequência, vale-se da definição ampla de cultura, como campo da vivência prática e da construção simbólica, para então definir seus objetivos.

1. Definição
A Constituição da República de Moçambique estabelece o princípio segundo o qual o Estado promove o desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das tradições e valores da sociedade moçambicana. O Programa Quinquenal do Governo27 reafirma o valor da cultura e a necessidade da criação de condições para uma maior participação criativa, livre e democrática de cada um e da sociedade civil no seu conjunto e o respeito pela diversidade de confissões religiosas e de origens étnicas.

A Cultura define-se como sendo um conjunto complexo de maneiras de ser, estar, comportar-se e relacionar-se desde o nascimento até a morte passando pelos rituais que marcam os principais momentos do processo de integração social e de socialização. A cultura compreende: os aspectos criativos; as artes visuais e cênicas; os materiais: vestuário, (...) as estruturas econômicas, sociais, políticas e militares (...) crenças e valores. (...) Por isso, a Cultura deve ser entendida como sendo a totalidade do modo de vida de um Povo ou Comunidade.


O Governo reconhece o papel da Cultura como componente determinante da personalidade dos moçambicanos e considera a sua valorização um elemento fundamental para a consolidação da Unidade Nacional, da identidade individual e de grupo. (MOÇAMBIQUE, 2007, p. 39, grifo nosso).

Tendo em vista o histórico anterior, o documento anuncia melhorias no reconhecimento da diversidade cultural e da legitimidade e direito à participação na criação e fruição das manifestações culturais. Não apenas afirma o “respeito pela diversidade de confissões religiosas e origens étnicas”, como assume a operacionalidade da construção de uma nação onde a identidade nacional e as múltiplas identidades individuais e de grupo se entreteçam no corpo social. No campo discursivo a dicotomia entre o “tribalismo” e “modernidade” aparenta sucumbir. Por outro lado os parcos avanços na construção de políticas de diversidade sugerem comedimento na assunção de avanços reais.

A intencionalidade em ampliar o acesso a bens culturais e consolidar bases para uma administração cultural assente na descentralização está presente tanto nos objetivos gerais como específicos, assim como se afirmam as “identidades culturais locais como fatores de expressão da unidade na diversidade”. Entretanto o tencionamento presente na Definição entre a promoção Unidade Nacional e a valorização da diversidade identitária é presente no transcorrer do documento, que também afirma a “valorização do patriotismo, liberdade, civismo, trabalho (...) na vida e atividade dos moçambicanos (MOÇAMBIQUE, 2007, p.40)”.

Ademais o documento postula as Prioridades para o desenvolvimento cultural, e desenvolve pareceres sobre cada uma delas, quais sejam: a pesquisa sócio-cultural; a preservação do patrimônio; a criação e a interpretação artísticas; as associações de interesse cultural; a participação da comunidade; o desenvolvimento de redes e instituições culturais, e a cooperação e o intercâmbio nacionais. A amplitude de prioridades explica-se pelo ineditismo do documento que apresenta orientações passiveis de classificação dentro de todas as seis categorias elencadas na tipologia de políticas culturais adotada neste estudo. Contudo, alguns traços específicos já anunciam o viés das orientações políticas posteriores, que apontaremos a seguir. Por ora, faz-se mister destacar a forma como é apresentado o papel do Estado nas políticas, ao qual é atribuído a função de regulamentação em detrimento da promoção. Dos Objetivos da Política observa-se:

h) Estabelecer as responsabilidades específicas do Estado e criar espaços de intervenção da sociedade civil na promoção do desenvolvimento cultural;

i) Estabelecer os princípios fundamentais para a coordenação e harmonização dos esforços dos principais intervenientes na actividade cultural; (MOÇAMBIQUE, 2007, p. 39, grifo nosso)

O Estado entra, sobretudo, como promotor de um ambiente institucional que regule o financiamento e funcionamento de instituições culturais, ao passo que, ao versar sobre a difusão e circulação, a proposta é impulsionar a entrada dos bens culturais na dinâmica mercantil. Foge desta tendência a constante menção à promoção de festivais e eventos nacionais, cuja finalidade é também a afirmação da moçambicanidade mediante a aproximação das diversas manifestações culturais do país; e a criação e fortalecimento de instituições culturais do Estado, que vão de museus, e institutos de pesquisa às Casas de Cultura.

Portanto, no mesmo momento em que há o reconhecimento na legislação de políticas culturais do direito à diversidade, o Estado tende a se desresponsabilizar da promoção e financiamento das mesmas. Este suposto paradoxo se explica ao considerarmos que, no momento em que o Estado moçambicano se abre ao mercado internacional, internamente são colocadas em curso políticas neoliberais. Portanto o aumento da incidência do discurso de valorização à diversidade na formulação de políticas culturais nacionais, presente em alguns organismos multilaterais como a UNESCO, é concomitante ao movimento de alargamento da lógica do mercado à regulamentação das dinâmicas sociais, e diminuição do papel do Estado como provedor do bem estar e minimizador das disparidades sociais.

No ano de 2000 volta a existir um Ministério direcionado somente Cultura. Durante a existência deste órgão é criada uma série de dispositivos legais normatizando: i) Legislação para o mercado cultural; ii) Patrimônio cultural; iii) Democratização do acesso. Como legislação para o mercado cultural temos as normas referentes aos direitos de propriedade – direitos do autor, selo nos fonogramas – e os direitos à produção cultural de uma linguagem artística especifica, o cinema. Normativas concernentes às casas de cultura e às bibliotecas estão agrupadas em democratização do acesso, já que têm como propósito a constituição de espaços de convívio, contato e troca de informações, podendo ou não ocasionar a criação de produtos ou práticas artísticas comercializáveis. Em patrimônio cultural destaca-se a criação do Museu de Chai e o da Ilha de Moçambique em localidades tombadas, respectivamente, como patrimônio histórico pelo Estado, e como patrimônio cultural pela UNESCO.


Isso ocorre em um período muito próximo a aprovação pelo Ministério do Turismo do Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Turismo em Moçambique (2004-2013), o qual explora a atratividade das “culturas ricas e dotadas de tradições sócio-culturais” ao turismo internacional. Dessa forma, embora sejam políticas de patrimônio podem também ser tomadas como iniciativas voltadas diretamente a motivos de ordem econômica. O viés em explorar o potencial econômico não se limita às instituições de patrimônio e à riqueza cultural por meio da estruturação da indústria turística. Ocorre uma tendência generalizada e que paulatinamente se aprofunda em buscar a consolidação de cadeias produtivas industrias para aferir renda de atividades artísticas e culturais. Um exemplo é o fortalecimento da legislação do direito do autor, e o selo de fonograma como iniciativas que objetivam aumentar a segurança dos atores privados quanto à rentabilidade de seus investimentos na criação de produtos culturais.

A tríade identidade e patrimônio, estruturação institucional, cultura para o desenvolvimento forjada no documento de 1997 e nas normativas subsequentes, ganha robustez no Plano Estratégico de Educação e Cultura (2006-2010/11), primeiro plano governamental direcionado a aspectos de política cultural em Moçambique. Elaborado em 2006, quando da extinção do ministério da Cultura, o Plano cumpre o papel de fundamentar o novo Ministério da Educação e Cultura então criado.

O principal objetivo do Plano para Cultura fora ‘promover, valorizar e preservar a cultura moçambicana, realçando a importância da cultura na criação da consciência patriótica nacional, bem como um mecanismo para reforçar a unidade nacional e um sentido de moçambicanidade” (ELISIO28, 2011, p.4, apud, NORAD, 2011, p.16). O documento oferece uma análise situacional da gestão pública de cultura, anuncia marcos regulatórios, e os seguintes componentes estratégicos para o setor: i) Promoção da Cultura e sua contribuição no desenvolvimento social e econômico; ii) Preservação e valorização do patrimônio cultural; iii) Desenvolvimento e fortalecimento da capacidade e infra-estruturas; iv) Fortalecimento da parceria com os vários intervenientes; v) Fortalecimento da moçambicanidade no âmbito da unidade na diversidade (MOÇAMBIQUE, 2006). A tríade é anunciada nos primeiros pontos, e reiterada nos dois seguintes, o penúltimo no fortalecimento de entes privados e empresas na produção de bens culturais, e no último mediante a abordagem de cultura para coesão e harmonia social e o fortalecimento da educação para o patrimônio cultural. Seria injusto omitir que o Plano aponta para o fortalecimento ou construção das casas de cultura em províncias, e reitera a importância de valorização das línguas locais, entretanto tais linhas perdem em relevância no mar de diretrizes para a “instauração de um ambiente favorável ao desenvolvimento e prosperidade das indústrias culturais” (MOÇAMBIQUE, 2006, p.120).

Em 2008 tem início o Programa Reforçar as indústrias culturais e criativas e políticas inclusivas em Moçambique31, financiado pelo Fundo das Nações Unidas para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (MDG-F). O programa inicialmente de três anos (2008-2011) foi estendido por mais seis meses e recebeu cinco milhões de dólares em verbas mediante o MDG-F do governo espanhol. Das muitas observações possíveis sobre o Programa, destacamos a dificuldade em operacionalizar a integração dos elementos sócio- culturais nos processos de desenvolvimento local, e a intensa dedicação em atualizar o quadro normativo de direitos de autor. Dos resultados mais expressivos, destacam-se o auxílio ao Ministério da Cultura na criação do Sistema de Informação Cultural de Moçambique32, e o planejamento para o fomento de indústrias criativas, culminando na criação do Diretório Nacional de Promoção das Indústrias Culturais.

O Diretório é vinculado ao atual Ministério da Cultura (Micult), instituído em dezembro de 2010, antes mesmo do término da vigência do PEEC. A promoção das indústrias culturais é uma das três grandes áreas definidas pelo Micult, sendo as outras preservação e valorização do patrimônio cultural, e promoção e desenvolvimento artístico. Assim como muitas empresas, o Ministério também estabeleceu sua visão33:

Fazer do patrimônio cultural material e imaterial factor dinamizador da unidade nacional, da moçambicanidade e do desenvolvimento, através do reforço dos instrumentos legais e institucionais que confiram a cidadania plena dos moçambicanos em geral e aos operadores culturais em particular.

Inferimos deste levantamento que as políticas culturais do período após 1992 caracterizam-se como de primeira e segunda geração (LIMA, ORTELLADO, SOUZA, 2013), respectivamente de consolidação da identidade e preservação do patrimônio, e de intervenção e regulação econômica do setor cultural. As primeiras são centradas na modalidade políticas de identidade nacional, em detrimento das de reconhecimento da diversidade. Ainda que estas figurem nas normativas internas, surgem com pouca ênfase, e acompanhadas de fracas análises de contexto e estratégias de implementação. Já as políticas de segunda geração emergem como hibrido entre as modalidades das políticas de proteção à indústria cultural nacional e políticas de economia criativa. Isto pois as políticas de indústria cultural não assinalam tanto marcas de protecionismo, e sim de incentivo à criação dos setores produtivos. Entretanto, não se tratam dos setores da economia criativa que, atrelados à comunicação e à forjar uma legislação para a consolidação de indústrias culturais tradicionais, como a do livro ou do audiovisual. O conceito de economia criativa, embora inclua estes setores, os transcende, abarcando atividades como moda, publicidade e softwares. Por este motivo, caracterizamos o país nesta situação mista, entre modalidades.

É um exercício interessante analisar as políticas pós 1992 enquanto iniciativas em forjar sistema cultural moçambicano. Segundo Antônio Rubim (2007), um sistema cultural necessita de um complexo conjunto de momentos que dinamizam a vida cultural. São eles: 1) Criação, invenção e inovação; 2) Difusão, divulgação e transmissão; 3) Circulação, intercâmbios, trocas, cooperação; 4) Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; 5) Fruição, consumo e públicos; 6) Conservação e preservação; 7) Organização.

No caso moçambicano as estratégias para o fortalecimento dos momentos 1, 2, e 5 são voltadas para as dinâmicas do mercado, respectivamente da invenção/inovação, divulgação e consumo. Os demais momentos, intercâmbios, análise, conservação e organização estão atreladas ao funcionamento de órgãos e instituições geridos pelo Estado. Se o circuito da produção artística, transmissão e difusão volta-se para a lógica do lucro, assumi-se que o desenvolvimento ao qual a visão do Mistério se refere, não seja outro daquele que sumariamente denota crescimento econômico. A arte e a cultura são assim resumidas à rentabilidade que delas é possível aferir. Uma maneira no mínimo controversa de enfrentar o desafio da promoção da diversidade cultural.


Em 2012 o Ministério da Cultura lança o Plano Estratégico da Cultura 2012-2022. Não discorreremos sobre o plano por situar-se fora do recorte desta pesquisa, limitada ao ano de 2011, quando finda a vigência do plano anterior. Entretanto, lançamos mão da declaração do Ministro da Cultura, Armando Artur, sobre as estratégias futuras a fim de fortalecer a fundamentação de nosso argumento.

O plano estratégico da Cultura tem como objectivo promover a cultura como factor de desenvolvimento econômico, social e humano em Moçambique como forma de dar resposta à emergência global da nova economia criativa que gera milhões de empregos no turismo cultural, musica, teatro, dança, artesanato e artes plásticas nas indústrias criativas, e, ao mesmo tempo dar resposta à ansiedade da sociedade moçambicana em perceber até que ponto o sector da cultura contribui no PIB - Produto Interno Bruto (FOLHA DE MAPUTO, 2014, grifo nosso).

Enquanto o desenvolvimento aparece ao lado dos marcadores social e humano, as respostas que se esperam do plano são todas de natureza econômica. Assim, reforça-se o Estado como instituição que oferece um ambiente propício a fazer da cultura fator de afirmação da unidade nacional e, sobretudo, meio para o aumento da produção e circulação de bens e serviços.

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