Google logo  MAIS PARA BAIXO  Google logo

Ad Unit (Iklan) BIG


A Estrada Morta, Mia Couto

RESUMO

Autor/a: Mia Couto
Título da Obra: Terra Sonâmbula
Título do Capítulo: A Estrada Morta (que inclui o “Primeiro caderno de Kindzu”: O Tempo em que o Mundo tinha a nossa idade)
Editora: Editorial Caminho
Ano de Lançamento: 1992
Local de Lançamento: Portugal
Série: Outras Margens, No 5
Gênero: Romance
Idioma: Português

1. Sobre a Obra
Terra Sonâmbula é um romance escrito por Mia Couto publicado em 1992. Ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos (1995) e foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbábue. Foi reeditado no Brasil pela Companhia das Letras – é um romance em abismo, escrito numa prosa poética que remete a Guimarães Rosa. Couto se vale também de recursos do realismo animista e da arte narrativa tradicional africana para compor esta bela fábula.

Resumo
A Estrada Morta (que inclui o “Primeiro caderno de Kindzu”: O Tempo em que o Mundo tinha a nossa idade)
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir.
Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra.
Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir. É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem se chama Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado. O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da sobrevivência. Quando ini- ciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e desesperançados.
Muidinga e Tuahir param agora frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha:
- Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.
- Mas aqui? Num machimbombo todo incendiado?
- Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.
Muidinga não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta:
- Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato?
- Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?
- Você sempre sabe, Tuahir.
- Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais?
- Quero. Mas na estrada quem passa são os bandos.
- Os bandos se vierem, nós fingimos que estamos mortos. Faz conta falecemos junto com o machimbombo.
Entram no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos carbonizados. Muidinga se recusa a entrar. O velho avança pelo corredor, vai espreitando os cantos da viatura.
- Estes arderam bem. Veja como todos ficaram pequenitos. Parece o fogo gosta de nos ver crianças.
Tuahir se instala no banco traseiro, onde o fogo não chegara. O miúdo continua receoso, hesitando entrar. O velho encoraja:
- Venha, são mortos limpos pelas chamas.
Muidinga vai avançando, pisando com mil cautelas. Aquele recinto está contaminado pela morte. Seriam precisas mil cerimónias para purificar o autocarro.
- Não faça essa cara, miúdo. Os falecidos se ofendem se lhes mostramos nojo.
Muidinga arruma o saco num banco. Senta-se e observa o recanto conservado. Há tecto, assentos, encostos. O velho, impávido, já se deitou a repousar. De olhos fechados, espreguiça a voz:
- Sabe bem uma sombrinha assim. Não descanso desde que fugimos do campo. Você não quer sombrear?
- Tuahir, vamos tirar esses corpos daqui.
- E porquê? Cheiram-lhe mal?
O miúdo não responde logo. Está virado para a janela quebrada. O velho insiste que descanse. Desde que saíram do campo de deslocados eles não tinham tido pausa. Muidinga permanece de costas viradas. Se escuta apenas o seu respirar, quase resvalando em soluço. Então, ele repete a sussurrante súplica: que se limpe aquele refúgio.
- Lhe peço, tio Tuahir. É que estou farto de viver entre mortos.
O velho se apressa a emendar: não sou seu tio! E ameaça: o moço que não abuse familiaridades. Mas aquele tratamento é só a maneira da tradição, argumenta Muidinga.
- Em você não gosto.
- Não lhe chamo nunca mais.
- E me diga: você quer encontrar seus pais porquê?
- Já expliquei tantas vezes.
- Desconsigo de entender. Vou-lhe contar uma coisa: seus pais não lhe vão querer ver nem vivo.
- Porquê?
- Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue.
Saem a enterrar os cadáveres. Não vão longe. Abrem uma única campa para poupar esforço. No caminho do regresso encontram mais um corpo. Jazia junto à berma, virado de costas. Não estava queimado. Tinha sido morto a tiro. A camisa estava empapada em sangue, nem se notava a original cor. Junto dele estava uma mala, fechada, intacta. Tuahir sacode o morto com o pé. Revista-lhe os bolsos, em vão: alguém já os tinha vazado.
- Eh pá, este gajo não cheira. Atacaram o machimbombo há pouco tempo.
O miúdo estremece. A tragédia, afinal, é mais recente que ele pensava. Os espíritos dos falecidos ainda por ali pairavam. Mas Tuahir parece alheio à vizinhança. Enterram o último cadáver. O rosto dele nunca chega a ser visto: arrastaram-no assim mesmo, os dentes charruando a terra. Depois de fecharem o buraco, o velho puxa a mala para dentro do autocarro. Tuahir tenta abrir o achado, não é capaz. Convoca a ajuda de Muidinga:
- Abre, vamos ver o que está dentro.
Forçam o fecho, apressados. No interior da mala estão roupas, uma caixa com comidas. Por cima de tudo estão espalhados cadernos escolares, gatafunhados com letras incertas. O velho carrega a caixa com mantimentos. Muidinga inspecciona os papéis.
- Veja, Tuahir. São cartas.
- Quero saber é das comidas.
O miúdo remexe no resto. As mãos curiosas viajam pelos cantos da mala. O velho chama a atenção: ele que deixasse tudo como estava, fechasse a tampa.
- Tira só essa papelada. Serve para acendermos a fogueira.
O jovem retira os caderninhos. Guarda-os por baixo do seu banco. Não parece pretender sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio. No enquanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego. Muidinga olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem. Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia seus chifres no peito do menino que se deita, enroscado como um congolote. O machimbombo se rende à quietude, tudo é silêncio taciturno.
Mais tarde, se começa a escutar um pranto, num fio quase inaudível. É Muidinga que chora. O velho se levanta e zanga:
- Pára de chorar!
- É que me dói uma tristeza...
- Chorando assim você vai chamar os espíritos. Ou se cala ou lhe rebento a tristeza à porrada.
- Nós nunca mais vamos sair daqui.
- Vamos, com a certeza. Qualquer coisa vai acontecer qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já vai-se encher de gente, camiões. Como no tempo de antigamente.
Mais sereno, o velho passa um braço sobre os ombros trementes do rapaz e lhe pergunta:
- Tens medo da noite?
Muidinga acena afirmativamente.
- Então vai acender uma fogueira lá fora.
O miúdo se levanta e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita. Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel. Depois se senta ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho.
- Que estás a fazer, rapaz?
- Estou a ler.
- É verdade, já esquecia. Você era capaz ler. Então leia em voz alta que é para me dormecer.
O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e cuidadosa, vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele apenas agora se recordava saber. O velho Tuhair, ignorante das letras, não lhe despertara a faculdade da leitura.
A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos: "Quero pôr os tempos...".


Artigos relacionados

Enviar um comentário


Iscreva-se para receber novidades