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As mãos dos pretos

Título: As mãos dos pretos
Autor: Luís Bernardo Honwana
Ano de lançamento: 2001
Editor / Editora: Nelson Saúte

O Autor da Obra
Luís Bernardo Honwana nasceu na cidade de Maputo em 1942. Cresceu em Moamba, no interior tendo estudado jornalismo. Em 1964, tornou-se militante da Frente de Libertação de Moçambique(FRELIMO), tendo sido preso em 1964 e permanecido encarcerado por três anos pelas autoridades coloniais. Após a independência, Honwana foi alto funcionário do governo e
presidente da Organização Nacional dos Jornalistas de Moçambique.
Desempenhou também funções de diretor do gabinete do Presidente Samora Machele Secretário de Estado da Cultura. Publicou Nós Matámos o Cão-Tinhoso em 1964. Em 1969, ainda em pleno colonialismo e com a guerra colonial no auge, a obra é publicada em língua inglesa (com o título
de We Killed Mangy-Dog and Other Stories) e obtém grande divulgação e reconhecimento internacional, vindo a ser traduzida para vários outros idiomas.

A Obra
Um de seus contos "As mãos dos pretos" foi registado no livro "Contos Africanos dos países de língua portuguesa", junto a outros contos dos autores Albertino Bragança, Boaventura Cardoso, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira, Mia Couto, Nelson Saúte, Odete Semedo, Ondjaki e Teixeira de Sousa. Todos estes autores vivem ou viveram em países africanos de língua oficial portuguesa.

Resumo
Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos-do-mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deve ficar senão limpa.
O Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as Coca-Colas das cantinas já tenham sido vendidas, disse que o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
- Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados de cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banhai num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos pés, antes de se vestirem e virem para o  mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e esmo até chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela disse foi mais sou menos isto:
- Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos  dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido

Comentários pessoais
Num contexto anterior à independência, Nelson resgata como manifestações únicas da prosa de ficção moçambicana nomes como João Dias (Godido e Outros Contos, em 1952), Luís Bernardo Honwana (Nós Matamos o Cão Tinhoso, em 1964), Orlando Mendes (Portagem, em 1966) e Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas, em 1975). “As Mãos dos Pretos”, que deu nome a esta antologia, é também título de um dos textos seleccionados para ilustrar a obra de Luís Bernardo Honwana. Nelson Saúte justifica a escolha deste texto com a seguinte frase: “talvez seja o mais belo conto que jamais se escreveu desde sempre na literatura moçambicana”. Nos anos 80 registou-se então uma verdadeira explosão de talentos, a maioria dos quais confirmaram-se mais tarde. À sombra do projecto “Charrua”, a literatura moçambicana foi conquistando nomes e enriquecendo com escritas emblemáticas. Ungulani Ba Ka Khosa com as suas estórias e Mia Couto, um dos mais conhecidos escritores moçambicanos da actualidade, são dois dos nomes que se destacam nesta época. Orlando Muhlanga, com o Diário de Sangue, um dos prosadores mais importantes do final do século XX revela-se já nos anos 90. “Com uma impressiva capacidade de construir fábulas, Muhlanga conta a guerra no seu interior, na dimensão fortíssima da sua crueldade”, relembra Nelson Saúte. A par de Ba Ka Khosa e Mia Couto, Aldino Muianga, Lília Momplé e Paulina Chiziane, entre outros, vêm colocar um ponto final na característica trágica que ensombrava a ficção moçambicana até então. Por último, a antologia intitulada “As Mãos dos Pretos” fica concluída com três textos do responsável pela apresentação deste manancial de ficção, Nelson Saúte.

Bibliografia
HONWANA, Luís Bernardo, As Mãos dos Pretos, in: Nós Matamos o Cão-Tinhoso, 5ª ed. Lisboa Afrotamento, 2000


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