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Ficha de Leitura - Vozes anoitecidas

DADOS DO ESTUDANTE
Escola Secundária da Liberdade
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DADOS DA OBRA
Título: Vozes anoitecidas
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
Categoria: Contos
Ano: 2013
Páginas: 152


O Livro
Publicado pela primeira vez em 1986, Vozes anoitecidas projetou o escritor moçambicano Mia Couto para o mundo. Conhecido até então por seu trabalho como jornalista e poeta, o autor - hoje tido como um dos mais influentes escritores da língua portuguesa - lançou aqui as bases daquela que viria a ser uma das principais características de sua obra ficcional: a reconstrução de laços entre registro oral e escrito.
Em doze pequenos contos, um rol de personagens esfarrapados e alheios ao palco principal dos acontecimentos narra, de seu ponto de vista marginal, histórias que flertam com o mágico e com o absurdo sem, no entanto, desviarem-se completamente do plano factual.
Em “As baleias de Quissico”, Jossias aguarda a chegada de um animal marinho de cuja boca, acredita, brotará “amendoim, carne, azeite de oliva e bacalhau”. Mas como saber se o animal existe, se ele jamais viu uma baleia? O enorme monstro que aporta sem ser visto pode ser tanto o misterioso “peixe grande” como um submarino carregado de armamentos ilegais. Jossias prefere acreditar no sonho e, como ele, outros personagens de Vozes anoitecidas encontram mais razão na fantasia que na lógica da guerra e da privação.
Ao promover uma espécie de vertigem, sob efeito da qual não se pode afirmar se uma narrativa é absurda ou se absurda é a realidade de que ela trata, o autor apresenta a perplexidade como ponto de partida para o fazer literário.
Vozes Anoitecidas são doze histórias de amor á nação moçambicana e á Língua Portuguesa. Doze histórias que compõem um dos livros mais fascinantes que me foi dado a ler nos últimos anos. A maneira que é escrita os contos são completamente individual do autor, é como se o leitor estivesse dentro dos contos, participando jutamente com os personagens, vivendo juntamente com eles os sons as dores as alegrias. è realmente fascinante a maneira que os contos prendem a atenção de uma forma que eu li todo o livro em um dia, acreditem... Este é o tipo do livro de não se pode deixar de ler, a senção depois que você lê os contos é como se tivesse levado os aprendizados de cada conto, como se tivesse realmente vivido aquilo tudo.

Resenha
Contos do livro:
- A fogueira – Marido pede que a mulher faça a própria cova enquanto está viva, pois ele não tem forças para tanto e preocupa-se com seu enterro;
- O último aviso do corvo falador – Homem possui um corvo que fala com os mortos e dá assistência àqueles que querem se comunicar com o além;
- O dia em que explodiu Mabata-bata – Um boi pisa em uma mina e explode; assustado, o menino pastor decide fugir;
- Os pássaros de Deus – Pescador pobre encontra um passarinho em seu barco e acredita que deve cuidar muito bem do animal, que é um emissário dos deuses;
- De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro – Dono de uma venda cumpre todo dia o mesmo ritual de bebedeira, sempre seguido por seu empregado, até que um dia a mulher lhe abandona;
- Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? – Confissão de homem que matou a esposa com um balde de água quente, acreditando que ela era feiticeira;
- Sade, o Lata de Água – Homem arma gritaria para os vizinhos pensarem que está espancando a mulher, quando esta, na verdade, já lhe abandonou há muito tempo;
- As baleias de Quissico – Homem se muda em busca de uma baleia mágica que distribui presentes a quem lhe encontrar;
- De como o velho Jossias foi salvo das águas – Jossias cai em um poço, após haver furtado a oferenda para os antepassados e é salvo a contragosto;
- A história dos aparecidos – 2 homens considerados mortos ressurgem após uma cheia e são considerados espíritos pela comunidade, que não lhes quer aceitar novamente como entes vivos;
- A menina de futuro torcido – Segue abaixo (um dos melhores contos de Mia);
- Patanhoca, o cobreiro apaixonado – Homem que cuidava de cobras se apaixona por uma chinesa, a qual mata.

Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a solução da sua vida. Viajante que passava, carro que parava, ele aproximava e capturava as conversas. Foi assim que chegou de ouvir um destino para sua filha mais velha, Filomeninha. Durante toda uma semana, chegavam da cidade notícias de um jovem que fazia sucesso virando e revirando o corpo, igual uma cobra. O rapaz tinha sido contratado por um empresário para exibir suas habilidades, confundir o trás para a frente. Percorria as terras e o povo corria para lhe ver. Assim, o jovem ganhou dinheiro até encher caixas, malas e panelas. Só devido das dobragens e enrolamentos da espinha e seus anexos. O contorcionista era citado e recitado pelos camionistas e cada um aumentava uma volta nas vantagens elásticas do rapaz. Chegaram mesmo a dizer que, numa exibição, ele se amarrou no próprio corpo como se fosse um cinto. Foi preciso o empresário ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda hoje o rapaz estaria cintado.
Joseldo pensou na sua vida, seus doze filhos. Onde encontraria futuro para lhes distribuir? Doze futuros, onde? E assim tomou a decisão: Filomeninha havia de ser contorcionista, apresentada e noticiada pelas estradas de muito longe. Ordenou filha:
- A partir desse momento, vais treinar curvar-te, tevar a cabeça até no chão e vice-versa.
A pequena iniciou as ginásticas. Evoluía lentamente para o gosto do pai. Para acelerar os preparos, Joseldo Bastante trouxe da oficina um daqueles enormes bidões de gasolina. A noite amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da curva do recipiente. De manhã, regava-a com água quente quando ela ainda estava a despertar:
- Essa água é para os seus ossos ficarem moles, daptáveis.
Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o sangue articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de tonturas.
- Você não pode querer a riqueza sem os sacrifícios - respondia o pai.
Filomeninha amarrotava a olhos vistos. Parecia um gancho já sem uso, um trapo deixado.
- Pai, estou a sentir muitas dores cá dentro. Deixa-me dormir na esteira.
- Nada, filhinha. Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos vamos deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da tarde, depois dos morcegos despegarem.
Os tempos passaram, Joseldo sempre esperando que o empresário passasse pela vila. Na garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do contratador. Nos jornais os olhos farejavam pistas do seu salvador. Em vão. O empresário recolhia riquezas em lugar desconhecido.
Enquanto isso, Filomena piorava. Quase não andava. Começou a sofrer de vómitos. Parecia que queria deitar o corpo pela boca. O pai avisou-lhe que deixasse essas fraquezas:
- Se o empresário chegar não pode-lhe encontrar da maneira como assim. Você deve ser contorcionista e não vomitista.
Decorreram as semanas, destiladas na angústia de Joseldo Bastante. Numa terra tão pequena só se passa o que passa. O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora, sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se. Vai-se embora tão depressa que nem deixa cinza para os habitantes reacenderem aquele fogo, se gostarem. O mundo tem sítios onde pára e descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares.
O tempo foi-se enchendo de nadas até que, uma tarde, Joseldo escutou de um camionista a chegada do destino: o empresário estava na cidade preparando um espectáculo.
O mecânico abandonou o serviço e rapidou para sua casa. Disse à mulher:
- Veste Filomeninha com seu vestido novo!
A mulher estranhou:
- Mas essa menina não tem vestido novo.
- Estou a falar o seu próprio vestido. O seu, mulher.
Puseram a menina de pé e meteram-lhe o vestido da mãe. Largo e comprido, via-se que as medidas não condiziam.
- Tira o leno. Artistas não usam panos na cabeça. Mulher: trança lá o cabelo dela, enquanto vou arranjar dinheiro da passagem do comboio.
- Vai onde arranjar o tal dinheiro?
- Não é seu assunto.
- Joseldo?
- Não me chateia mulher.
Horas depois partiam para a cidade. No comboio, o mecânico satisfez-se de pensamentos: um fruto não se colhe só pressas. Leva seu tempo, de verde-amargo até maduro-doce. Se tivesse procurado a solução, como outros queriam, teria perdido esta saída. Orgulhoso, respondia aos apressados: esperar não é a mesma coisa que ficar à espera.
No embalo dos carris seguia Joseldo Bastante a entregar sua pequena filha à sorte das estrelas, à fortuna dos imortais. Olhou a menina e viu que ela estremecia. Perguntou-lhe. Filomeninha queixou-se do frio.
- Qual frio? Com todo esse calor, onde está o frio?
E procurou o frio como se a temperatura tivesse corpo e lhe tocasse num arrepio dos olhos.
- Deixa, filhinha. Quando começar entrar fumo, isto já vai aquecer.
Mas as tremuras da menina aumentavam sempre até serem mais que o balanço do comboio. Nem o vestido largo escondia os estremeções. O pai tirou o casaco e colocou-o sobre os ombros de Filomena.
- Agora veja se pára de tremer que ainda me descose o casaco todo.
Chegaram à cidade e começaram a procurar o escritório do empresário. Seguiram por ruas sem fim.
- Charra, filha, tantas esquinas! E todas são iguais.
O mecânico arrastava a filha, tropeçando nela.
- Filomena, fica direita. Hão-de dizer que lhe levo até no hospital.
Por fim, deram com a casa. Entraram e foram mandados esperar numa pequena sala. Filomeninha adormeceu-se na cadeira, enquanto o pai se entretinha com sonhos de riqueza.
O empresário recebeu-os só no fim do dia. Respondeu sem muitos quês.
- Não me interessa.
- Mas, senhor empresário...
- Não vale a pena perder tempo. Não quero. O contorcionismo já está visto, não provoca sensação.
- Não provoca? Veja lá a minha filha que chega com a cabeça...
- Já disse, não quero. Essa menina está doente.
- Essa menina? Essa menina tem saúde do ferro, aliás de borracha. Só está cansada da viagem, só mais nada.
- A única coisa que me interessa agora são esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e mastigar pregos.
O Joseldo sorriu, envergonhado, e desculpou-se de não poder servir:
- Sou mecânico, mais nada. Parafusos mexo com a mão, não com os dentes.
Despediram-se. O empresário ficou sentado na grande cadeira achando graça aquela menina tão magra dentro de vestido alheio.
No regresso Joseldo ralhava com o destino. Dentes, agora são dentes! A seu lado, Filomena arrastava-se, trocando os passos. Entraram no comboio e esperaram a arrancada do regresso. O pai foi acalmando. Parecia olhar o movimento da estação mas os seus olhos não passavam além do vidro fosco da janela. De súbito, um brilho acendeu-lhe o rosto. Segurando a mão da filha, perguntou, sem a olhar:
- É verdade, Filomena: você tem dentes fortes! Não é isso que diz a sua mãe?
E como não tivesse resposta, abanou o braço da criança. Foi então que o corpo de Filomeninha tombou, torcido e sem peso, no colo de seu pai.

Meus Comentários
Mia Couto é um poeta, antes de qualquer coisa. E mais uma vez fiquei fascinada com a forma poética com que Mia maneja a prosa em VOZES ANOITECIDAS, seu livro de estreia na prosa.
É uma coletânea de breves histórias com personagens improváveis e, ao mesmo tempo, palpáveis, de tão reais. Os relatos são, de fato, vozes que vão anoitecendo, narrativas de um país devastado no pós-guerra, um povo aflito, que sofre por medo da pobreza, dos campos minados e, em alguns pontos, por medo de suas próprias origens e tradições. 
Juntamente com tudo temos, naturalmente, as fortes impressões deixadas pela língua falada, em pleno ofício de auto-criação: concebendo novas palavras e usando as já existentes em contextos novos e inesperados. Em todas as narrativas, o que mais emociona é a língua, o brincar com as palavras. A escrita de Mia não é apenas bela, mas dá a impressão de ter sido encaixada, palavra por palavra, cada fragmento em seu devido lugar.
Ao ler Mia Couto, o leitor percebe a beleza nos detalhes, saindo da leitura com um novo olhar sobre o uso das palavras, sobre o quanto elas podem voar mais alto. E não há lugar melhor para ir que não seja através dos olhos de um escritor como Mia.
Um livro onde as emoções humanas são pintadas de uma beleza profunda, onde saímos de nós e nos encontramos nas dores e alegrias de outros.
Mia escreve em estado de glória.

Citações
A fogueira
Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho. (p. 21)
Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido. (p. 22)
Neste deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de asas. Não é um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha. (p. 24)

O último aviso do corvo falador
Era um pedaço do céu que estava-lhe dentro. (p. 30)
Era uma solitária de acidente, não de crença. (p. 31)

O dia em que explodiu Mabata-bata
Fugir é morrer de um lugar. (pp. 42-43)

Os pássaros de Deus
Mais peregrino que o rio não conheço. As ondas vão, vão nessa ida sem fim. (p. 51)
A dor é poeira que nos vai vazando a luz. (p. 52)
Está ver o caçador, maneira que ele faz? Prepara a zagaia momento que ele vê a gazela. Enquanto não, o pescador não pode ser o peixe dentro do rio. O pescador credita uma coisa que não vê. (p. 52)

De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro
Tristeza mais triste é aquela que não se ouve. (p. 62)

Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências. (p. 75)
O futuro quando chega não me encontra. (p. 76)
Mas a morte é uma guerra de enganos. As vitórias são só derrotas adiadas. (pp. 78-79)
Mas eu daqui da cela só vejo as paredes da vida. (p. 80)
Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm datas separadas. (p. 81)
Nossa voz, cega e rota, já não manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo esses começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno é fazer os outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como é que podem acreditar no céu? (pp. 82-83)
Fora de casa sempre faz frio. (p. 83)

Saíde, o Lata de Água
Sempre que se recordava trabalhavam facas dentro da alma. (p. 90)

As baleias de Quissico
Eu não disse que era preciso ter fé, mais fé do que dúvida? (p. 102)

De como o velho Jossias foi salvo das águas
Os meses estão todos no ventre uns dos outros. (p. 105)
Mas o destino da morte é ser sempre muita. (p. 109)
A madeira é lenha antes mesmo de arder. (p. 112)
Salvaram-no da morte, não o salvaram da vida. (p. 112)
Salvar um alguém deve ser serviço completo … Não é levantar a pessoa e depois abandonar sem querer saber o depois. Não chega ficar vivo. Palavra da minha honra. Viver é mais. (p. 112)
A mentira da noite é matar o cansaço dos homens. (p. 114)

A história dos aparecidos
Uma pessoa não é um divórcio, um milando. (p. 118)
Como somos injustos com nosso corpo. De quem nos esquecemos mais? É dos pés, coitados, que rastejam para nos suportar. São eles que carregam tristeza e felicidade. Mas como estão longe dos olhos, deixamos os pés sozinhos, como se não fossem nossos. (p. 120)
Um homem que abandona um sítio porque foi derrotado, esse homem já não vive. Não tem mais lugar para começar. (p. 121)

A menina de futuro torcido
O mundo tem sítios onde para e descansa a sua rotação milenar. (p. 129)
Esperar não é a mesma coisa que ficar à espera. (p. 130)

Patanhoca, o cobreiro apaixonado
Se invento é culpa da vida. A verdade, afinal, é filha mulata de uma pergunta mentirosa. (p. 135)
As alegrias saíram-lhe da vida, esqueceram de voltar. (p. 137)
Um homem chora? Sim, se lhe acordam a criança que tem dentro. (p. 142)

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