A tradição romana atribuía o fim da Monarquia romana a um drama familiar que levou a uma revolta palaciana envolvendo confronto entre pessoas próximas do último rei, Tarquínio o Soberbo. Trata ‑se do relato da tragédia de Lucrécia, violada, segundo a lenda, por Sexto, filho daquele rei, depois de o receber em sua casa como hóspede e familiar. Consumado o estupro, a jovem convocou o esposo, Tarquínio Colatino, o pai, Terêncio, e os amigos Lúcio Júnio Bruto e Públio Valério Publícola, a quem relatou o crime, suicidando ‑se de seguida com as célebres palavras: «para que nenhuma mulher viva desonrada à sombra do exemplo de Lucrécia». Os presentes, horrorizados, decidiram expulsar Tarquínio e não mais aceitar a presença de reis na cidade, pelo que, em vez deles, foram eleitos dois cônsules: Lúcio Júnio Bruto e Tarquínio Colatino .
As fontes apresentam o ano 1 da República como bastante atribulado. Depois de descoberta uma conjura para reconduzir Tarquínio, em que participaram os sobrinhos de Colatino e os filhos de Bruto, se estes foram executados por ordem inexorável do pai, Colatino parecia pouco determinado, pelo que acabou por renunciar ao cargo ou ser afastado por Bruto e banido de Roma por carrregar o nome de Tarquínio. Para o seu lugar foi eleito Públio Valério, cognominado Publícola. Bruto foi morto em combate contra as tropas de Tarquínio, e Publícola governaria algum tempo sozinho, de forma a impor algumas leis consideradas, no entanto, populares. Foi depois eleito para o lugar de Bruto Lucrécio, pai de Lucrécia, que morreria poucos dias depois. Finalmente foi eleito Marco Horácio a quem coube, segundo a tradição, dirigir o rito de sagração do templo de Júpiter do Capitólio. Associada ao início da República aparece, assim, também a figura de Valério Publícola, que acumula consulados (508, 507, 506, 504) e desempenha o papel de importante legislador democrático (Plutarco emparelha ‑o com Sólon nas Vidas.Paralelas), e a de Horácio, ligado à inauguração do templo de Júpiter do Capitólio que a maior parte da tradição colocava também em 509 a.C.
O ceticismo em relação a estes relatos já vem da antiguidade e acentuou ‑se nos historiadores modernos. A tradição literária retrata Tarquínio segundo os lugares ‑comuns tradicionais aplicados aos retratos dos tiranos. A história da expulsão do rei, impulsionada pela ofensa a Lucrécia, lembra o relato da queda da tirania dos Pisitrátidas em Atenas (Th. 6.53 ‑59). As personagens envolvidas têm um caráter romanesco de conto popular, e o suicídio da jovem desonrada pode simbolizar um sacrifício expiatório . A saga foi sendo retocada pela tradição oral e pode até ter origem dramática. Por outro lado, não se entende muito bem como é que são os sucessores ao trono que lideram o golpe; como é que, sendo da família dos Tarquínios, são eleitos cônsules Colatino e Bruto; ou como é que Colatino teve, depois, de ser banido da cidade por pertencer à família de Tarquínio e Bruto não .
Quanto às fontes, sobre esta época temos três textos principais: Dionísio de Halicarnasso, Tito Lívio e Plutarco (Vida.de.Publícola), que, por sua vez se baseiam em historiadores do final da República. Mas temos de pôr em questão os dados que teriam estes autores sobre os primeiros tempos e como os interpretariam. Em comparação com os Gregos, a historiografia em Roma inicia ‑se consideravelmente tarde : segundo Dionísio de Halicarnasso (1.6.2), os primeiros historiadores foram Fábio Pictor e L. Cíncio Alimento, que, em finais do século III a.C. escreveram a história de Roma em grego. E seria baseada na transmissão oral, que se considera fiável apenas durante cerca de três gerações. De qualquer modo, Fábio Pictor (e, segundo parece, outros historiadores da época) debruça ‑se sobre o período da fundação e os tempos mais próximos de si, descartando a fase da República primitiva. Este senador, que pertence àquela elite dos nobiles que se desenvolveu no decorrer do século IV, regista em grego os feitos dos Romanos, para celebrar a gesta da classe a que pertence e os valores que cultiva. Nos Annales. de L. Calpúrnio Pisão Frugi e de Énio, a Monarquia é tratada de modo mais detalhado do que os primeiros tempos da República, e a informação só volta expandir ‑se para o período das Guerras Samnitas. O princípio da República parece ter sido esquecido, uma vez que as instituições foram suplantadas por desenvolvimentos políticos posteriores. Constatamos, no entanto, que, em Lívio e em Dionísio de Halicarnasso, a informação sobre o início da República se apresenta já mais detalhada. Tudo indica, pois, que os relatos que possuímos sobre esse período inicial se baseiam em fontes que, no final da República, interpretaram os acontecimentos à luz dos problemas políticos que viviam ou projetaram retroativamente acontecimentos do momento em que escreviam, marcados pelos conflitos entre optimates e populares , ou efabulavam visando glorificar as suas linhagens
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