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Formação ética e deontológica de profissionais de saúde e suas implicações no cuidar do sofrimento

Os estudos que, no século XX, tomaram como objecto as profissões têm vindo a defini-las, quanto ao que as distingue de outras ocupações, pelo seguinte conjunto de características:
  • um corpo de conhecimentos especializados;
  • a autonomia no exercício profissional;
  • a emissão de credenciais prévia e indispensável ao exercício profissional e a capacidade de auto-regulação (exercidas pelas associações profissionais, de forma independente ou em colaboração com o Estado);
  • um código de ética; reconhecimento social.

Este conjunto de características permitiu, há séculos, reconhecer a profissão de médico. Já quanto à profissão de enfermeiro (e, mais ainda, em outros campos de actuação na área da saúde), esse reconhecimento foi recente (ou está ainda a processar-se).

Na sociedade da informação em que vivemos, não pode escamotear-se, paralelamente, a crescente importância da noção de competência como conjunto de habilidades cognitivas e destrezas motoras, bem como atitudes, valores e conhecimentos teórico-práticos necessário para cumprir uma função especializada de um modo socialmente reconhecido e aceitáve. Este conceito (confirmado em termos da educação superior pelo acordo de Bolonha) justifica cabalmente a necessidade de uma avaliação dos conhecimentos adquiridos ao longo da educação formal, prévia ao exercício da profissão; e, para além disso, mostra como o indivíduo não está nunca totalmente preparado para ela, legitimando a necessidade da formação contínua e, eventualmente, a possibilidade de cassação da carteira ou cédula profissional.

Qual o papel da ética e deontologia neste quadro de definição da competência para os profissionais de saúde (médicos e enfermeiros)? Qual o contributo do ensino desta matéria ao longo da educação formal para a formação do profissional competente? Como se procede à avaliação das suas competências éticas? A dimensão ética e deontológica está presente ao longo da sua formação contínua?

Não nos deteremos na análise de todas estas questões. Apresentaremos apenas, de forma propedêutica, uma análise dos modelos de ensino da ética e deontologia profissional na formação dos profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) em Portugal.

Modelos de ensino da ética e deontologia profissional na formação dos médicos

Os modelos de formação dos médicos, no que respeita à Ética e à Deontologia, focalizam-se sobretudo na Bioética e em questões deontológicas de foro legal, havendo por vezes alguma confusão entre estas duas dimensões (por exemplo, no que se refere à confidencialidade). Tal acontece um pouco em todo o mundo e Portugal não é excepção.

O modo como estas matérias estão organizadas nos curricula dos cursos de graduação em Medicina assume habitualmente um dos quatro modelos que passamos a descrever.

  1. Nas universidades mais antigas, é usual depararmo-nos com o ensino da ética e da deontologia como unidade curricular autónoma, frequentemente nos primeiros anos de formação graduada, ocorrendo muitas vezes que os conteúdos surgem descontextualizados relativamente às restantes áreas de formação. Note-se, em favor deste modelo, que, como assinala Pellegrino e reiteram Hafferty and Franks
(1994:864), “ethics, as a distinct subject matter with its own body of literature and methodology, is as teachable as any other discipline”. Contudo, não pode esquecer-se que “the knowledge of ethics cannot be expected to guarantee virtue. […] students arrive at medical school with their own values – values that are not changed much by a course in ethics, a viewpoint widely held in clinical medicine and frequently endorsed by basic science faculty”.
2. Em algumas universidades que surgiram mais recentemente, a Ética e Deontologia deixou de ser uma unidade curricular ou área formativa autónoma, antes integrando-se (a Ética, mais frequentemente) na formação de outras áreas curriculares, com uma tipologia de ética aplicada, recorrendo-se a metodologias activas, como o PBL (Problem Based Learning). Assim, por exemplo quando se estuda Ginecologia e Obstetrícia) existe um módulo dedicado à resolução de problemas desta área, que envolvem decisões éticas. A Deontologia surge com um maior relevo, quer como unidade curricular autónoma obrigatória, quer como opcional („Medicina Forense‟, por exemplo).

Procura-se, assim, fazer a ponte entre as diversas áreas de especialidade e a reflexão ética, com a expectativa de que os estudantes, ainda que apenas no âmbito da formação profissional, unifiquem valores e prática.

3. Um terceiro modelo pode ser encontrado também em universidades mais recentes, nas quais se junta às áreas formativas clássicas (ainda que com metodologias inovadoras) uma área da Humanidades (com carácter autónomo, ou inserida em outra área, como Saúde Comunitária), à qual se vincula o ensino da Ética e da Deontologia (juntamente com outras matérias, como História da Medicina, e outras vertentes formativas de tipo humanista, como a Literatura, a Música, etc). As metodologias oscilam entre as de tipo mais expositivo e as de ética aplicada ou de dilemas deontológicos, em contextos específicos de formação nas áreas tradicionais.

Pretende-se, deste modo, criar as condições para que os estudantes, a partir da sua formação profissional, questionem o quadro de valores anteriormente criado e venham a tornar-se profissionais íntegros e pessoas dignas de confiança, realizando a dupla integração: formação científica-formação ética, valores profissionais-valores pessoais. Dito de outra maneira; a academia pretende, neste modelo, não só formar bons médicos, mas também médicos bons.

4. Num último modelo, detectamos todo o curriculum formativo dirigido para a formação humanista de médicos, inserindo-se neste quadro o ensino das áreas tradicionais. Verifica-se uma valorização da prática clínica face às „ciências básicas‟ e de áreas por vezes consideradas menores, como a „saúde pública e/ou comunitária‟. O ensino da Ética e da Deontologia possui um carácter misto quanto à metodologia, encontrando-se módulos que recorrem especialmente à exposição (nomeadamente no que respeita aos fundamentos da Bioética), bem como a metodologias activas como o PBL e o roleplaying. Este modelo não existe em Portugal.

Modelos de ensino da ética e deontologia profissional na formação dos enfermeiros

Os dados que a seguir apresentamos resultam da análise de conteúdo dos curricula e programas de 22 Escolas de Enfermagem2, tendo por base as seguintes categorias: Ética, Bioética e Deontologia. A referida análise de conteúdo teve também em conta o documento Recomendações Relativas ao Ensino da Ética e Deontologia nos Cursos de Enfermagem3, produzido pela Ordem dos Enfermeiros, o qual tem por base documentos internacionais, nomeadamente da OMS.

Em todos os estabelecimentos que responderam ao inquérito existe ensino em Ética, sendo que nos cursos adaptados ao «Processo de Bolonha», a unidade curricular (uc) aparece leccionada exclusivamente no 1º ano dos cursos de graduação.

De igual modo, Bioética é leccionada em todos os estabelecimentos; enquanto Deontologia está presente em 21. Verifica-se, contudo, uma grande discrepância na tipologia e horas atribuídas às uc nos estabelecimentos adaptados ou não ao «Processo de Bolonha».
Verifica-se também a existência de uma grande variabilidade de nomes para definir as uc (no que respeita à Ética, há mais de 15 denominações), assim como os conteúdos inseridos nas mesmas; existe ainda uma grande discrepância na carga lectiva entre as diferentes áreas curriculares. Em articulação com estes dados, emerge a dificuldade de vários estabelecimentos cumprirem as recomendações do documento acima mencionado, em termos de conteúdos programáticos.

Assim, apenas cinco das 22 instituições estudadas seguem todas as recomendações do referido documento, como adiante se explica.

Quanto à Ética: para o desenvolvimento de competências éticas, os conteúdos programáticos mais relevantes são: “princípios e fundamentos da ética, virtude e valores, princípios fundamentos da ética em Enfermagem, teorias éticas, processo de tomada de decisões e dilemas éticos”.

Quanto à Deontologia: são contributos importantes temas como “o percurso histórico da Deontologia, a regulação e auto-regulação profissional, direitos, deveres e incompatibilidades, relevando-se a possibilidade de diversas abordagens dos deveres reflectidos no Código Deontológico (por exemplo, na salvaguarda dos direitos dos clientes, em relação à segurança ou à excelência dos cuidados, etc.)”.

Quanto à Bioética: sugere-se a consulta, a análise e o debate dos artigos publicados pelo Conselho Jurisdicional na revista da Ordem dos Enfermeiros, na secção de Ética em Enfermagem, assim como os pareceres do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida).

Bilbiografia

  • Aristóteles (2009). Ética a Nicómaco. São Paulo. Atlas Editora.
  • Brad Hooker, Ideal Code, Real World Oxford University Press, 2000
  • Comins Mingol, Irene (2003), La ética del cuidado como educación para la paz. Tesis doctoral presentada a la Universitat Jaume I.
  • Kant, Emmanuel (1984). Crítica da Razão Prática Lisboa. Edições 70.
  • Kemp. Peter (2000), “Four Ethical Principles in Biolaw”, in Peter Kemp et al. (ed.) Bioethics and Biolaw, Vol. II, Four Ethical Principles, Copenhagen: Rhodos International Science and Art Publishers and Centre for Ethics and Law, pp. 13–22.
  • Kohlberg, L. (1976), “Moral stages and Moralization”, in Lickona, T (ed) (1976), Moral Development and Behavior: Theory, Research and Social Issues, New York: Rinehart and Winston.
  • MacIntyre, A. (1984). After Virtue: A Study in Moral Theory . Indiana. University of Notre Dame Press.
  • Oliveira, C. C. (2008). A Medicina é uma Ciência? Uma Interrogação Filosófica. Pessoas e Sintomas, nº 3: 26-32.
  • Oliveira, C. C. (2009). Humanidades na Formação Médica: Realidade ou Farsa? Reflexão e Ação, vol. 17, 2: 225-242.
  • Pellegrino, E. e Thomasma, D. (1988). For the Patient's Good : the Restoration of Beneficence in Health Care. Nova Iorque. Oxford University Press.
  • Reis, A. (2009). O Ensino da Ética e Deontologia nas Licenciaturas em Enfermagem. Dissertação de doutoramento em Filosofia, área de especialização Ética. UCP.
  • Tobón, S., Pimienta, J., y García Fraile, J.A. (2010). Secuencias didácticas: aprendizaje y evaluación de competencias. México: Pearson
  • Torralba i Roselló, F. (2002), Ética del Cuidar: Fundamentos, contextos y problemas, Institut Borja de Bioètica / Fundacion MAPFRE de Medicina.

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