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Cuidar do sofrimento e formação académica

Constituindo o sofrimento uma experiência desagradável de desintegração interior percepcionada por uma pessoa, que usualmente o atribui causalmente a algo (percepcionado como) exterior, existem intensidades gradativas deste tipo de experiência.

Apesar de estarmos perante um fenómeno universal na história ontogénica de cada ser humano e da história da filogénese da nossa espécie, essa intensidade gradativa não pôde, pelo menos até ao momento, ser alvo de um instrumento de medição universal, nem sequer de avaliação, devido – obviamente – ao carácter quase exclusivamente subjectivo desta experiência que nos constitui a todos ontometafisicamente.

Cuidar de alguém pressupõe que esse outro de nós necessita; por isso, a função mais fundamental de qualquer cuidador de saúde, formal ou não formal, consiste em minorar o sofrimento que torna o outro tão frágil e vulnerável. „Curar quando possível, cuidar sempre‟ é a máxima que faria sentido treinar como um mantra na formação de médicos. Infelizmente, a segunda parte da máxima existe usualmente desmembrada, tendo-se tornado património, pelo menos executivo, quase sempre dos enfermeiros.

Cuidar do sofrimento de outrem tem implicado uma postura ética de solicitude, de solidariedade e de responsabilidade, mais vincada quando cuidamos dos que nos são próximos, mas também existente em qualquer outro que, de forma verbal ou outra, nos peça auxílio.

Dada a estrutura curricular da maior parte dos cursos de Medicina e de Enfermagem, o locus possível de reflexão e aprendizagem sobre o sofrimento seriam as unidades curriculares de Ética, Bioética, Deontologia. Infelizmente, porém, muitos docentes abordam, como descrevemos, estas áreas sem o enraizamento ético e axiológico que lhes subjaz. Daí que, embora bem intencionadas, muitas decisões dos profissionais de saúde assim formados vêm a causar mais sofrimento aos pacientes, quer se baseiem somente no cumprimento de deveres, quer apenas na apreciação das eventuais consequências dos seus actos. Em ambas as atitudes ter-se-ia ainda que distinguir entre deveres dos pacientes e deveres dos profissionais, bem como as consequências dos actos dos profissionais e as dos empreendidos pelos doentes.
Em muitas circunstâncias, existem também incongruências no cumprimento de princípios bioéticos e deontológicos, o que pode dever-se ao facto de tais princípios se fundamentarem em éticas (e quiçá sistemas ontometafísicos) de orientação totalmente diferente, e até contraditórios entre si. Assim, por exemplo, o princípio da não maleficência pode fundamentar-se na ética do dever kantiana, enquanto o princípio da justiça é claramente consequencialista. Quando um profissional de saúde tem que optar entre estes dois princípios, apenas a conscientização da corrente ética que lhe subjaz lhe permitirá direccionar-se sem dúvidas. Torna-se, pois, absolutamente necessário que, antes de estar em contexto real, tenha reflectido sobre as várias correntes éticas e se tenha posicionado face a elas. Os curricula destes profissionais deveriam, portanto, quanto a nós, proporcionar a reflexão ética fundamentadora e não cingir-se à apresentação de princípios bioéticos e discussão de dilemas morais. Tal porém, nem sempre acontece, o que acarreta para os cuidadores de saúde sofrimento na hora de decidir e também, obviamente, para os doentes que deles dependem em tantos aspectos.

A formação dos médicos e enfermeiros não costuma dedicar-se à diferenciação entre dor e sofrimento, nem tão pouco à reflexão sobre a continuidade entre estas duas realidades existenciais. Em nosso entender, no âmbito da ética e da deontologia poderão explorar-se estas questões. Se a prática do cuidado pode considerar-se denominador comum às profissões de médico, enfermeiro e, em geral, a todas as profissões da área da saúde, relacionando-se directamente com a diminuição do sofrimento dos doentes e das suas famílias, então é possível identificar, nessas mesmas profissões, uma moral do cuidado. A partir da análise fenomenológica desta, poderão arrolar-se os modos de ser e condições que fazem do cuidado um ethos, e fundamentá-lo numa reflexão ética.

Em nossa opinião, o treino dos profissionais de saúde que incida na compreensão e na prática da ética das virtudes pode orientá-los para uma efectiva diminuição do sofrimento humano, pois implica o desenvolvimento da capacidade de discernimento prudente, tão necessário na tomada de decisões éticas. No entanto, mais do que a afirmação de um modelo, defendemos que na formação ética e deontológica dos profissionais de saúde se faça a discussão da fundamentação última das práticas e dos princípios bioéticos.

Bilbiografia

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