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Políticas culturais no Moçambique socialista

Moçambique alcançou a independência em 1975, sob forte luta armada entre Portugal e grupos locais, dos quais se destaca a Frelimo, fundada em 1962 como grupo de guerrilha. No poder desde então, em 1977 a Frelimo declarou-se partido Marxista-leninista e embarcou em uma estratégia que visava a transformar Moçambique numa nação socialista, moderna e desenvolvida. 

A nação moçambicana como entidade homogênea e coesa se constrói na oposição à dominação portuguesa ultramar. Estigmatizada, e fundamentada em narrativas de sofrimento, a subalternidade colonial se figurara a antítese do devir. Samora Machel, líder frelimista na luta contra a independência, é emblemático ao conclamar seus combatentes:
Assim se reforça nossa unidade, enraizada na experiência comum de sofrimento, na miséria dos salários, (...) no ódio suscitado pela rapina de terras, de gado, na experiência do chicote e palmatória (...) (FRELIMO, 1977b, p.105, grifos do autor, apud CABAÇO, 2009, p. 301)

O ideário sob o qual se construíram as bases de uma nova nação se fundamentava na interiorização, por todos os moçambicanos, dos preceitos de um homem novo. Valores e aspirações anteriores já não caberiam para a consolidação desta nova ordem, indubitavelmente mais desenvolvida – numa perspectiva progressista e linear da história – que se firmaria a caminho do comunismo. A antinomia entre “novo” e “velho” (MACAGNO, 2009, p.20) logo se estendeu para “nós” X “eles”. As “ideias erradas” combatidas pela Frelimo transitavam dos “vícios herdados” do tribalismo, regionalismo, tradicionalismo, à “ambição”, “espírito de sabe tudo”. Conquistada a independência, esta triagem entre práticas “reacionárias” e as que “deveriam ser valorizadas”, já perpetrada nas zonas libertadas durante a guerra pela independência, deveria ser estendida a todo o território.

Nas áreas rurais, a estratégia residiu na reorganização das atividades produtivas das populações rurais mediante a consolidação de aldeias comunais, onde a racionalização dos processos sob o comando do governo traria maior eficiência na produção de bens agrícolas (desde alimentos ao algodão). A passagem da agricultura familiar para a produção coletiva era tida como valor, numa concepção um tanto simplória do materialismo histórico, sob a qual as mudanças nos mecanismos das forças produtivas provocariam as transformações “necessárias” na esfera cultural.

Em contextos urbanos – como em Maputo, a capital, e Beira, a segunda maior cidade – o governo nacionalizou muitos dos imóveis cedendo sua utilização aos grupos dinamizadores e seus apoiadores, encorajados a difundir a linha do partido e organizar os trabalhadores. O processo pretendia incutir nos trabalhadores o sentimento de autoconfiança e de indentidade coletiva supostamente não experimentados durante o período colonial (ISAACMAN e ISAACMAN16, 1983, p. 161-68; In PITCHER, 2006, p.91). No início dos anos oitenta, cerca de 75% da produção industrial havia sido nacionalizada. (CABAÇO, 2009, p. 303; PITCHER, 2006, p.91-92). Caberia também aos grupos, as “campanhas de dinamização revolucionária de toda a cultura moçambicana” (BORGES, 2001, p.234), intervenientes em todas as esferas territoriais, de distritos a localidades e círculos. Grupos culturais a serviço do então Ministério da Educação e Cultura trabalhavam para:
Suplantar os sentimentos de pertença local regional ou étnica, erigindo expressões e sentimento de pertença nacionais: danças, ritmos musicais, esculturas maconde, registros de resistência e outros elementos deveriam passar a ser sinônimo da memória coletiva da comunidade nacional imaginada (BORGES, 2001, p.234)
Das políticas direcionadas especificamente ao campo cultural, merecem destaque a criação dos Centros de Estudos Culturais (CECs) e das casas de cultura, ambos em 1977, e gerenciados pelo Ministério da Cultura em Educação.

Enquanto nos CECs eram ministrados cursos em linguagens artísticas, as casas de cultura serviriam como pólos irradiadores da cultura nacional. Deveriam reproduzir os mecanismos e conteúdo fundamentais do homem moçambicano como base ideológica – juntamente às escolas, aldeias comunais, cooperativas, conselhos de produção e empresas estatais – para a formação da nova sociedade. Para distritos, províncias e locais, seriam instauradas as casas, para bairros, círculos ou células, os chamados centros culturais.

Muitos argumentavam que as casas deveriam ser “órgãos independentes, só do povo, para o povo (...) desenvolver espontaneamente a cultura” (TEMPO, n. 363, p.42, 1977, apud, BORGES, 2001, p.241). Entretanto imperou a noção segundo a qual eram indesejáveis quaisquer manifestações de expressão da individualidade ou de identidades coletivas e étnicas distantes do substrato almejado pela Frelimo. Tendências espontaneístas significavam incorrer em desvios inaceitáveis. Conceitos como cultura tradicional, cultura de elite, cultura de massa não eram cabíveis. A própria preservação da tradição oral dos contos, incentivada como um dos elementos do todo cultural nacional, devia ocorrer mediante a inserção de “um novo conteúdo político” (BORGES, 2001, 241-242).

Com vista à valorização e preservação do patrimônio histórico e indentitário do país, foi realizada em 1978, a 1ª Reunião Nacional de Museus e Antiguidades, na Ilha de Moçambique, quando foram apresentadas as conclusões das Seções de Preservação e Valorização Cultural. Participaram da reunião os representantes do então criado Serviço Nacional de Museus e Antiguidades (SNMA), ainda pelo Ministério da Cultura e Educação17. A reunião possibilitou a “avaliação da capacidade de ingerência do Estado e do engajamento da população em projetos de valorização, preservação e democratização das atividades culturais” (BORGES, 2001, p.243). A tentativa era implantar a planificação do funcionamento museal, contando com as orientações pelo Departamento de Trabalho Ideológico do Partido (DTIP).


A consolidação do português como língua oficial foi concomitante a todas essas políticas. Em verdade, o português já era utilizado pela Frelimo durante a luta armada no ensino e alfabetização de adultos18. Destacamos da fala de um representante da Frelimo em seminário da Unesco de 1971 os argumentos da partido para esta medida:

Não há língua dominante em nosso país. A escolha de uma das línguas moçambicanas seria uma medida arbitrária que poderia ter consequências graves. Além disso, as instalações técnicas e o número de pessoal que temos à nossa disposição não nos permitem realizar de forma satisfatória o tipo de pesquisa necessária para tornar as línguas nacionais operacionais, especialmente no campo da ciência. Fomos obrigados a usar o Português como língua de instrução e comunicação entre nós (YAI 1983, p. 2apud PATEL, 2012, p.9).

A adoção do português foi uma decisão política. Resolvia a questão por não privilegiar um dentre os diversos idiomas falados no território, e assim não colocar um ou outro grupo em vantagem sobre os demais; e pelo papel geoestratégico em diferenciar os moçambicanos de seus vizinhos, muitos dos quais foram rivais da Frelimo durante a luta por independência.

Esperava-se que a adoção do português, assim como as demais políticas, forjasse um novo Estado-nação. Como atesta Hall (2005 p.21), a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, e a identificação não é algo automático, e sim adquirida e perdida mediante as experiências coletivas e individuais. O que se observa nesse conjunto de políticas é a transversal busca pela construção de uma nova identificação. O desenvolvimento de outros hábitos, a adoção de novos valores, a vinculação da entrada e permanência nas instituições formais a um novo idioma, a interação com a cultura escrita, todos esses são elementos da política de construção da identidade nacional. De acordo com a tipologia apresentada no capítulo anterior, apresenta-se como política de primeira-geração da modalidade que prima pela narrativa totalizante, quase que no extremo oposto do espectro onde estariam as políticas de promoção da diversidade cultural.

No cômputo geral o projeto de intervenção cultural, instrumento para o progresso e unificação nacional, era pouco realista. O critério político-ideológico precedia o cultural- artístico. Sob a bandeira empobrecedora do realismo socialista a arte e a cultura foram tomadas, ideologicamente, como campos de batalha para a “descoberta dos caminhos de transformações das culturais tradicionais e assimiladas na cultura nova” (Tempo20, n.281, 22 fev.1976, apud, BORGES, 2001, p.234-235). Particularmente nas áreas rurais do centro e norte de Moçambique as políticas se mostraram extremantes insensíveis aos ritos, valores e temporalidades constituintes das identidades daqueles povos.

Ademais a falta de quadros, de equipamentos culturais, Moçambique enfrentava fraquezas estruturais:
(...) baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e dos meios de produção, alta demanda de recursos materiais e de quadros médio e superior qualificados pra cumprir as funções e tarefas programadas, enormes necessidades de resoluções (ou amenizações) de carências de serviços sociais pra combater a pobreza, a fome, a falta de assistência sanitária, o gigantesco nível de analfabetismo [em 1970, cerca de 90% da população era analfabeta] e a precariedade (aliada ao desequilíbrio da distribuição pelo país) de fábricas, indústrias, estradas, meios de transporte, etc. (BORGES, 2001, p.245)

Com a intensificação do conflito civil, em 1983, o partido tornou-se ainda mais autoritário. Por motivos que também resvalam em fortes mudanças na conjuntura internacional, a Frelimo começou a se aproximar do ocidente. Neste mesmo ano a cultura perdeu a pasta de Ministério e passou a ser Secretaria de Estado da Cultura, dirigida por um Secretário de Estado diretamente subordinado ao Conselho de Ministros, voltando ao posto de Ministério somente em 1987, também sob Decreto Presidencial. A partir de então passou a gerir o Instituto Nacional do Livro e do Disco (antes do Ministério da Informação) que recebeu seu estatuto interno apenas em 1991, e a ser responsável pela proteção legal dos ben materiais e imateriais e do patrimônio cultural moçambicano21. Mantêm-se a preocupação com a criação de instituições científicas e técnicas (museus, bibliotecas, arquivos, etc.) necessárias à proteção e valorização do patrimônio cultural, e surge a atenção para a produção de bens culturais (obras de cinema, artes plásticas, música, dança, etc.) de forma ainda tímida, para sua comercialização. Portanto o início das políticas de segunda geração, da regulação da dimensão econômica das atividades artístico-culturais, ocorre no momento de aproximação com o bloco capitalista.


Seguindo recomendação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, Moçambique diminuiu tarifas de importação, aprovou uma série de leis para incentivar o investimento privado e liberou a taxa de cambio. (SIDAWAY e PODER22, 1995, p.1.480; PITCHER23, 2002, p.124-39, apud, PITCHER, 2006, p. 93). O esgotamento das forças armamentistas de ambos os lados em 1990 e a forte pressão internacional levaram a Frelimo a atribuir maior importância ao processo de negociação. No ato Acordo Geral de Paz assinado em Roma em 1992, o governo moçambicano já havia abandonado o socialismo.

A cultura teve papel preponderante na postura e agência frelimista pós-independência, ainda que de forma transversal, emersa em ações de ordem política e econômica. No regime autoritário e unipartidário tomamos a política do partido como correspondente a do governo de Moçambique e, portanto, na construção do ideário nacional. Serão apresentadas a seguir as ações específicas de órgãos estatais da cultura e adentraremos às políticas após a adesão do país à economia de mercado.

Referencias bibliográficas

Para ver as referencias bibliográficas destas matéria clique aqui:



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