Em todo país do mundo, homens de Estado desenvolvem idéias acerca do modo de conceber o sistema internacional, sua estrutura e funcionamento, a economia internacional, bem como as relações do país com estruturas e conjunturas e com as outras nações. Estamos nos referindo a dirigentes, em especial os diplomatas, que desempenham funções relevantes para a formação nacional.
As correntes brasileiras do pensamento político e do pensamento diplomático carregam como legado histórico a identidade pluralista em que nasceu, cresceu e amadureceu a nação, cujo curso profundo repousa sobre substrato étnico-cultural múltiplo. Na esfera das idéias políticas e diplomáticas aplicadas às relações internacionais do país, esse substrato oferece base real, porém os pensadores se alçam com desenvoltura. Examinemos, por exemplo, duas tendências relevantes: o pensamento liberal e o pensamento industrialista.
Um país liberal, aberto aos fluxos de idéias, conhecimentos, pessoas, capitais, produtos; conectado com o mundo não só por meio desses fluxos, mas por ordenamentos que os convertem em organização institucional, regras de direito, garantia de estabilidade e previsibilidade, regras, portanto, inspiradoras da conduta da sociedade e do Estado sobre o cenário internacional: essa linha de pensamento não emerge no Brasil à era de Fernando Henrique Cardoso e dos neoliberais do fim do século XX. A abertura ao mundo penetra a cultura e a vida política brasileira como fator imanente de sua história. Assim pensava D. João VI quando concebia, em 1808, a liberdade para o comércio e as manufaturas no Brasil: construir o império americano ancorado no aumento da riqueza, cuja possibilidade seu conselheiro, José da Silva Lisboa, o primeiro economista liberal brasileiro, condicionava à contribuição interna e ao livre comércio. Nessa visão de conveniente abertura ao mundo, José Bonifácio de Andrada e Silva, o pai da pátria, concebia à época da Independência a nação a construir. Jamais desconectou-se a vida política dessa corrente liberal ao longo de toda a história nacional.
Um país industrial não foi pela primeira vez conceituado por Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitschek, dois estadistas modernizadores do século XX. A linha de pensamento teve precursores distantes. A gênese do pensamento industrialista brasileiro vem embutida em medidas como Carta Régia, decreto e alvará tomadas em 1808 e 1809 por D. João, sob inspiração de seu conselheiro. A corrente se reforça, ao adquirir consistência racionalizada nos textos de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e Raimundo José da Cunha Matos nos anos 1820, Bernardo Pereira de Vasconcelos e Sales Torres Homem, entre outros, no decorrer do no século XIX. O liberalismo radical da segunda metade do século XIX, tão bem expresso por Tavares Bastos, colocava-se a serviço da sociedade primário-exportadora, uma organização voltada à manutenção do atraso histórico por elites sociais que se haviam apropriado do Estado e dele se serviam com exclusividade.
Da mesma forma, no século XX e XXI, porém sob novas e adaptadas formulações, como democracia de mercado, globalização benéfica, governança global, liberais radicais se colocam a serviço de interesses da elite das nações, que estabelece em proveito próprio o ordenamento global. Os pensadores que conceberam através do tempo o paradigma liberal-conservador de relações internacionais dominaram o exercício do poder dos dirigentes por mais de um século, desde a Independência até a revolução de 1930, precisamente. A tendência liberal imprimiu traços indeléveis na formação nacional. Já os pensadores que inspiraram o paradigma desenvolvimentista pela via da modernização industrial, depois de observarem sua voz ressoar no deserto durante tão longo tempo, a profetizar o futuro, acabariam substituindo os primeiros de 1930 em diante.
Os conceitos brasileiros aplicados à inserção internacional do país são múltiplos e por vezes complementares, como estas duas correntes acima referidas, capazes de produzir o equilíbrio do modelo de inserção ou modelos contraditórios. No fundo, a sociedade brasileira sempre foi liberal, até mesmo porque esse lastro ideológico serviu de ambiente e fermento para a germinação de conceitos contraditórios.
Liberal era a sociedade, e aberta ao mundo, pensava D. Pedro II, ao visitar os Estados Unidos, a Europa, a Rússia, o Próximo Oriente e o Egito, durante a segunda metade do século XIX. Ao despachar para a China, em 1879, uma grandiosa missão com o fim de estabelecer com o Celeste Império o comércio, as relações diplomáticas e o fluxo migratório. Para industrial evoluía a sociedade, por tal razão Ernesto Geisel concebia um país no topo da escala do desenvolvimento, com tecnologias de ponta, empreendimentos de vulto e parcerias estratégicas diversificadas, no momento em que os Estados Unidos perdiam peso sobre a cena internacional e criavam dificuldades à conquista do último estágio do desenvolvimento. Exigências do segundo paradigma histórico sugeriam outras conexões externas, com Alemanha, Itália e Japão, por exemplo, os quais se dispunham a oferecer fatores de prosperidade sonegados pela potência hegemônica da área.
Nessa práxis e nesse substrato étnico-cultural pluralista inspiraram-se Oswaldo Aranha, Araújo Castro, Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Ramiro Saraiva Guerreiro para conceituar o universalismo da diplomacia brasileira, ao qual alguns dirigentes seus contemporâneos, a exemplo de João Neves da Fontoura e Vasco Leitão da Cunha, impunham limites por meio do conceito de ocidentalismo, uma estratégia de ação externa excludente.
De modo similar, globalistas epistêmicos, como o grupo assessor de Carlos Saúl Menem na Argentina (entre os quais Carlos Escudé, Andrés Cisneros e Felipe de la Balze) e o grupo assessor de Fernando Henrique Cardoso no Brasil (entre os quais Pedro Malan e Celso Lafer), extraíram do liberalismo genético de suas nações, bem como de consensos e conselhos externos, inspiração para elaborar e programar a vigência do paradigma neoliberal de inserção internacional, uma criação da inteligência política latino-americana dos anos 1990, que não foi concebida de modo uniforme por todos os dirigentes regionais, porém apresentava componentes comuns.
O pensamento neoliberal não foi adotado no Brasil sem reação social, visto que outra tendência imanente à história impregnava a cultura política. Aliás, deu origem, dentro do próprio grupo dirigente neoliberal, ao pensamento cético quanto a possíveis efeitos econômicos e sociais e teve de ser temperado com outros conceitos, como o de globalização assimétrica e de Estado logístico, que fariam sucesso logo mais, quando os dirigentes neoliberais foram substituídos no início do século XXI.
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