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Política Externa: definição, origem, análise e seus modelos

A política externa, tradicionalmente associada aos Estados, mas crescentemente associada a outros atores, como a União Europeia (UE), projeta interesses e objetivos domésticos/internos para o exterior. É assim entendida como uma ferramenta essencial no posicionamento dos atores no sistema internacional. No entanto, o desenho, formulação e implementação da política externa não é um processo simplista e linear, como analisado nos diferentes modelos teóricos e na necessidade de conjugação destes para um entendimento mais compreensivo do processo; e não tem lugar de forma isolada, revelando o caráter coconstitutivo das dimensões interna (doméstica) e externa (internacional) que acompanham todo o processo. A discussão agente/estrutura é, neste quadro, um referencial fundamental com alguma discordância relativamente à prevalência do agente sobre a estrutura ou, ao invés, da condicionalidade que a estrutura impõe ao agente. Neste contexto, a proposta avançada por James Rosenau (1966, 1969) de que a política externa implica uma relação bi ‑direcional entre as dimensões interna e externa, ultrapassando a convicção tradicional de que a política externa é dirigida por fatores internacionais, foi generalizada nos estudos nesta área. contudo, a discussão mantém ‑se relativamente ao peso relativo de cada uma destas dimensões no processo de formulação da política externa. por um lado, há autores que argumentam que o contexto interno constitui a variável relevante na definição e prioritização da agenda de política externa (Neack et al., 1995; Saideman e Ayres, 2007: 191); por outro, as abordagens estruturalistas focam no papel da estrutura como informando os desenvolvimentos internos, e desse modo constituindo o elemento de referência fundamental (Keohane e Nye, 2000; Waltz, 1979).


Para além da tradução do debate agente/estrutura na teorização sobre política externa, outras dimensões de análise têm sido incorporadas em alguns estudos, nomeadamente questões mais subjetivas, mas não menos relevantes, como atitudes, crenças, valores e interesses subjacentes aos processos de formulação e decisão, e que têm contribuído essencialmente para a análise das motivações implicadas nos processos de política externa. Este debate implica a discussão do papel e características individuais do decisor, bem como a consideração dos quadros ideológicos em que as decisões são tomadas (carlsnaes, 2003; Houghton, 2007; Jørgensen, 2006; Snyder et al., 1954). como expressão deste desenvolvimento, estudos recentes introduziram novas metodologias na análise de política externa, como análise de discurso, estudando a linguagem da política externa (campbell, 1993; Doty, 1997; Larsen, 1997; Sjöstedt, 2007). A análise de política externa tornou ‑se, assim, uma área de estudo complexa implicando múltiplas variáveis relativamente aos níveis de análise, atores, processos e resultados.

Este capítulo avança com algumas definições de política externa, apresenta os modelos teóricos de formulação e decisão em política externa, e explicita diferentes variáveis que devem ser tidas em conta em análises de política externa. Não pretendendo ser exaustivo, procura mapear as bases teóricas essenciais associadas à política externa, fornecendo os enquadramentos para uma análise mais detalhada e compreensiva de políticas externas diferenciadas.

As origens da análise de política externa
A análise de política externa enquanto abordagem teórica distinta teve a sua origem no período a seguir à Segunda Guerra mundial. Segundo Hudson e Vore (1995) três trabalhos distintos estão na génese desta abordagem: Foreign Policy Decision ‑Making de Richard Snyder, Henry Bruck e Burton Sapin (1954); Man ‑Milieu Relationship Hypothesis in the Context of International Politics de Harold e margaret Sprout (1956 e desenvolvido mais detalhadamente em 1965 no livro The Ecological Perspetive on Human Affairs: With Special Reference to International Politics); e Pretheories and Theories of Foreign Policy de James Rosenau (1966).

O estudo de Snyder, Bruck e Sapin foi inovador e importante, pois identificou o decisor humano como o principal determinante do comportamento do Estado. Desta forma, o foco da análise centrou‑se no decisor e no seu entendimento da situação. mais concretamente, «o objetivo analítico principal é a recriação do ‘mundo’ dos decisores conforme eles o veem» (Snyder, Bruck e Sapin, 2002: 59). Igualmente significativo, o trabalho de Herman e margaret Sprout foi fundamental para determinar a relação entre o psycho ‑milieu (o meio percecionado pelos decisores e ao qual reage) e o operational milieu (o meio no qual as decisões são executadas). Relativamente à formulação e ao conteúdo das decisões políticas, o que importa é a forma como os decisores imaginam que o meio é, e não a forma como realmente é. Relativamente aos resultados operacionais das decisões, o que importa é como as coisas são, e não a forma como os decisores imaginam que são (Sprout e Sprout, 1957: 327 ‑328). por sua vez, o artigo de Rosenau, reforçando a necessidade de aplicar conhecimentos de outras ciências sociais nas explicações de política externa, contribuiu para uma análise multinível e multicausal da complexidade associada à compreensão da mesma.

Embora os estudos de política externa tenham desenvolvido diferentes abordagens, os trabalhos acima referidos estabeleceram os pressupostos teóricos basilares da disciplina (Hudson e Vore, 1995), nomeadamente: o conhecimento das especificidades dos indivíduos envolvidos nas decisões de política externa é crucial para a compreensão das escolhas; a informação sobre estas especificidades deve ser incorporada na construção de teorias transnacionais e de médio ‑alcance; as teorias resultantes devem integrar múltiplos níveis de análise; e a compreensão do processo de formulação da política externa é tão importante, se não mais importante, do que a compreensão dos outputs da política externa.


Embora todos os trabalhos incorporassem estes pressupostos, cada um contribuiu de forma particular para o crescimento e consolidação de abordagens distintas na análise da política externa. Desta forma, o trabalho de Snyder, Bruck e Sapin catalisou os estudos dedicados à decisão de política externa, com especial enfoque nos processos de decisão e nas estruturas dos grupos responsáveis por essas mesmas decisões. Ao distinguir entre os diferentes milieu, os Sprout estiveram na génese dos trabalhos dedicados ao contexto da política externa, nomeadamente os que procuram compreender a dimensão cognitiva dos decisores (crenças, atitudes, valores, emoções, estilos, perceções). O enfoque teórico de Rosenau, por sua vez, estabeleceu os alicerces para os trabalhos de política externa comparada, com a sua ênfase na análise dos ‘eventos’ de política externa.

O sucesso destes diferentes trabalhos fez da análise de política externa uma componente central para a compreensão da política internacional. porém, desde o fim da Guerra Fria os pressupostos subjacentes à análise de política externa adquiriram uma renovada importância e centralidade (Hagan, 2001). Devido à dificuldade das teorias tradicionais dominantes em explicar a complexidade da política contemporânea, o enfoque nos indivíduos e nos processos de decisão passaram a assumir um lugar central na política internacional. Os novos desafios do pós ‑Guerra Fria cimentaram a convicção de que as teorias tinham de reconhecer que «com cada transformação sistémica… a vontade e imaginação humana são fundamentais ao influenciar a condução dos assuntos globais» (Hudson e Vore, 1995: 210). A natureza fluida do mundo pós ‑Guerra Fria amplificou a exigência de encontrar modelos capazes de lidar melhor com a complexidade da política internacional do que os modelos sistémicos tradicionais. De acordo com Hudson (2008), a análise de política externa contemporânea mantém os compromissos teóricos particulares que a demarcaram desde a sua conceção e que hoje se continuam a demonstrar relevantes para uma compreensão mais efetiva da complexidade da política internacional.

Compreender a política externa
Não existe uma definição absoluta e consensual de política externa, mas as várias definições avançadas contêm atributos e pressupostos semelhantes:

  • «o sistema de atividades desenvolvido pelas comunidades para modificar o comportamento de outros Estados e para ajustar as suas próprias atividades ao ambiente internacional» (George modelski apud Kegley e Wittkopf, 1995: 45);
  • «o esforço de uma sociedade nacional para controlar o seu ambiente externo pela preservação das situações favoráveis e a modificação das situações desfavoráveis» (James Rosenau apud Zorgbibe, 1990: 433);
  • «programa orientado para a resolução de objetivos ou de problemas elaborado pelos decisores políticos com autoridade (ou seus representantes), direcionado a entidades externas à jurisdição dos responsáveis pela formulação política» ( Hermann, 1990: 5);
  • «o conjunto de objetivos, estratégias e instrumentos escolhidos pelos responsáveis governamentais pela formulação política para responder ao ambiente externo atual e futuro» (Rosati, 1994: 225).

Todas estas definições comungam de uma série de princípios e pressupostos, dos quais se destacam o papel dos governos estatais como atores privilegiados na formulação da política externa e a dimensão intencional da ação política. Nestas conceptualizações há dificuldade em compreender outros atores como agentes ativos na política internacional, pois instituições não ‑estatais não são consideradas. Assim, temos dificuldade em incluir entidades supraestatais (como a ONU ou a UE) ou subestatais (como o Hezebollah e comunidades não ‑estatais) na análise da política internacional. Igualmente, estas definições não incluem os resultados não intencionais das decisões políticas, deixando uma lacuna conceptual por resolver. De facto, Kalevi Holsti (Gustavsson, 1999) já alertou para a distinção entre a política externa «intencional» e «atual», confirmando que os resultados das decisões políticas nem sempre são os inicialmente pretendidos. por sua vez, Kjell Goldmann (Gustavsson, 1999) e Laura Neack (2008) têm salientado o facto de haver uma distinção a fazer entre a «política verbalizada» (ação que o ator declara que persegue) e a «política não ‑verbalizada» (ação de facto implementada). Vários autores defendem que as análises devem considerar a razão porque os atores declaram e seguem determinadas ações, pois a análise de política externa inclui o estudo dos processos, declarações e comportamentos (Neack, 2008: 10).


Tendo em consideração o exposto, este manual apresenta uma definição de política externa que procura ser o mais abrangente possível e que transponha algumas das lacunas conceptuais referidas. Assim, entende ‑se por política externa o conjunto de objetivos, estratégias e instrumentos que decisores dotados de autoridade escolhem e aplicam a entidades externas à sua jurisdição política, bem como os resultados não intencionais dessas mesmas ações.

Ao concentrar ‑se nos diferentes atores e nos diferentes processos e dinâmicas de decisão, a análise de política externa permite uma abordagem complementar que enriquece o nosso entendimento da política internacional. mais concretamente, a análise de política externa centrada nos processos de decisão ajuda a «identificar padrões de decisão únicos e genéricos e gerar entendimentos sobre os estilos e personalidades de liderança que não podem ser revelados através de uma abordagem sistémica à política externa» (mintz e DeRouen Jr., 2010: 5). como referido, a política externa envolve dinâmicas complexas, como incerteza sobre o ambiente político, trade‑offs diversos no momento da decisão, difusão da autoridade política, e variabilidade nas estruturas de decisão (Hagan, 2001). Só uma abordagem assente na compreensão dos processos de decisão permite compreender estas complexidades. De facto, as teorias tradicionais das Relações Internacionais, sobretudo as teorias sistémicas, não explicam convenientemente muitos dos eventos da política internacional (Hagan, 2001), pois ao renunciar à análise dos processos de decisão e seus principais intervenientes, as teorias tradicionais acabam por não abordar fatores fundamentais para uma compreensão mais completa dos acontecimentos internacionais, uma vez que qualquer Estado tem de decidir sobre uma agenda ampla que exige a tomada de decisões (mintz e DeRouen Jr., 2010). Além do mais, a análise de política externa, ao focar nos diversos atores envolvidos nos processos de decisão, permite conhecer a forma como os indivíduos, grupos e organizações são condicionados pelos vários fatores domésticos, nomeadamente os fatores eleitorais, a opinião pública, os grupos de pressão e as preferências ideológicas (Holsti, 2006).

Em suma, a política externa é uma área abrangente cujo enfoque inclui questões diversas, como segurança, economia, ambiente e cultura. A agenda é, por isso, densa, e as burocracias e grupos que apoiam o processo de formulação e decisão cruzam diferentes valências para poderem responder à multidimensionalidade associada à política externa. paralelamente ao quadro institucional, variáveis objetivas como localização geoestratégica, população e recursos humanos, capacidade militar, económica e de inovação tecnológica, bem como fatores de cariz subjetivo (incluindo motivações, identidade, valores, perceções) conjugam ‑se na formulação, decisão e implementação da política externa, com diferentes matrizes a caracterizarem diferentes atores. Além do mais, os objetivos de política externa, fundamentalmente assentes em interesses nacionais, são modelados de acordo com estes fatores e com a interação destas componentes com os arranjos do sistema internacional, exigindo ajustes variados e não permitindo uma projeção dos interesses e objetivos dos Estados sem limites. São estes múltiplos modelos, atores e dinâmicas que procuramos identificar, descrever e explicar nas páginas seguintes.


Modelos teóricos
Os assuntos de política externa são muitas vezes abordados de forma ligeira e informal, sem grandes considerações teóricas. contudo, análises mais profundas dos eventos revelam um grau de complexidade que exige uma maior compreensão teórica. De facto, os estudos realizados pelos investigadores de política externa «evidenciam características regulares e previsíveis que refletem pressupostos nem sempre reconhecidos sobre o caráter dos desafios, as categorias nas quais os problemas devem ser considerados, os tipos de provas relevantes e os determinantes das ocorrências» (Allison e Zelikow, 1999: 4). consequentemente, estes pressupostos estão na base dos diferentes modelos teóricos que auxiliam os investigadores a melhor compreender os eventos políticos internacionais, nomeadamente identificando os fatores determinantes mais relevantes das ocorrências, bem como as circunstâncias em que determinados fatores conduziram a um determinado desfecho em vez de outro.

Esta secção identifica os principais modelos teóricos relativos aos processos de formulação e decisão em política externa. Note ‑se que apesar de apresentados em secções distintas, estes modelos não são necessariamente excludentes, havendo consenso na bibliografia relativamente à interação destas diferentes abordagens numa explicação compreensiva dos processos.

 

Ator Racional

Organizações Burocráticas

Pequenos Grupos

Líderes

Atores envolvidos na decisão de política externa

Estado age como decisor racional único

Organizações burocráticas formais do Estado

Pequeno número de indivíduos (variável) junto da liderança

Líderes individuais

Dinâmicas do modelo de decisão

Identificar interesse nacional; Identificar opções; Análise custo/benefício das opções; Escolher política que melhor serve o interesse nacional

Organizações agem com base em processos estandardizados; Interesses determinados pela organização a que se pertence; Negociações para determinar política

Interação dinâmica entre os diversos membros do grupo; Group think; Social sharing; Internalização; Compromisso negocial

Decisão resultante da escolha individual; Apreciação subjetiva da situação; Processos cognitivos

Origens e fontes teóricas

Teoria da utilidade esperada

Teoria organizacional; Sociologia das burocracias; Política burocrática

Psicologia social; Sociologia dos pequenos grupos

Psicologia cognitiva; Dissonância cognitiva; Dinâmica psicológica

Quadro 1. modelos de formulação e decisão em política externa

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