O estado atual das teorias das relações internacionais apresenta um quadro caótico do ângulo de sua formulação intelectual . Esse fato, per se, aconselha o estudioso a tomá-las com cautela. Elas conservam, como afirma Marie-Claude Smouts, a função original de elaborar a compreensão do objeto de estudo, as relações internacionais, e de iluminá-lo com o conhecimento organizado . Constituem, destarte, um corpus de conhecimento de grande utilidade, como se observa com teorias desenvolvidas por outras ciências humanas e sociais.
As teorias integram, no Brasil, os currículos dos cursos de relações internacionais, aproximadamente setenta cursos de graduação e cerca de uma dezena de cursos de pós-graduação de mestrado e doutorado. Isto é, exercem uma contribuição de ponta para a formação do pensamento e da inteligência nacional. Por outro lado, informam o processo decisório, como afirma em seminários o atual ministro brasileiro de relações exteriores, Celso Amorim, por algum tempo professor de teoria das relações internacionais na Universidade de Brasília: quem não conhece a teoria não exercita a intuição conselheira da decisão .
O caos a que nos referimos diz respeito a contradições entre teorias e correntes teóricas que os manuais evidenciam. O caos também se observa em publicações, até mesmo de grandes mestres, que exibem interpretações das relações internacionais sem se apresentarem como formuladores de teorias stricto sensu. Em nosso entender, o estado caótico das teorias explica-se pelo fato de não serem imparciais, já que se inspiram em campos de observação limitada, e pelo fato de não serem objetivas, já que outros campos de observação suscitariam o contraditório, enfim por não convencerem como explicação universal, como presumem.
A desconfiança intelectual invade com força ética o domínio das teorias das relações internacionais. As raízes em que se apóiam as vinculam a interesses específicos de determinadas sociedades que constituem seu campo de observação, bem como a valores que estas sociedades cultivam e, ainda, a padrões de conduta que sugerem e enaltecem como sendo ideais. Enquanto promovem tais fatores específicos, descartam interesses, valores e padrões de conduta de outras sociedades. O construtivismo, mélange das contradições da teoria, surge como reação de superação do impasse a que se chegou.
Desvendar as ciladas da teoria é tarefa tão relevante quanto apropriar-se de seu conhecimento. O realismo, por exemplo, trilhou o caminho do sucesso nas universidades e meios intelectuais de todo o mundo, de modo incomparável. A desqualificação dessa corrente teórica inicia com as evidências de sua origem nos Estados Unidos, no início da Guerra Fria, por tal razão estabelecendo o Estado como agente principal das relações internacionais e a segurança como motivação primeira da ação externa. O realismo propõe ao mundo interesses, valores e padrões de conduta do Ocidente.
O realismo não é isento nem explica as relações internacionais como pretende. Às vezes pode convir a certas nações navegar contra o realismo, ensina Parola . E acrescenta: a moral dele foi excluída desde a origem. Por que não se moveriam as relações internacionais contra o realismo, capaz de produzir a ordem injusta?
A crise das teorias elaboradas nos meios acadêmicos do centro do capitalismo e difundidas para o mundo tira explicação de suas carências de objetividade, isenção e alcance, por um lado, da irrupção dos países emergentes, detentores de metade da riqueza global, por outro. As teorias que servem ao Primeiro Mundo não são convenientes, necessariamente, aos emergentes. Tomemos, como exemplo, a teoria da estabilidade hegemônica.
Para Bertrand Badie, a teoria da estabilidade hegemônica, no mundo atual, exibe tanta capacidade explicativa para as relações internacionais quanto uma eventual teoria da instabilidade hegemônica . Esta última, com efeito, fundar-seia no suporte empírico de uma base de observação tão global quanto a primeira: o antiamericanismo ou a aversão natural à hegemonia; o terrorismo ou a reação de quem não tem meios de potência; a autonomia dos Estados ou a imitação da potência hegemônica pela conduta unilateral; a necessidade de entendimento multilateral para alcançar resultados em questões vitais como clima, fome, formas de energia, comércio internacional, respeito aos direitos humanos, gerenciamento de conflitos locais, bilaterais ou regionais. Em suma, a ordem internacional não se ampara na potência hegemônica do momento se esta não for capaz de conectar-se com as forças globais de modo a agregar o peso destas últimas na criação da ordem. E nesse caso a teoria da estabilidade hegemônica esvazia-se.
Um contrapoder, com efeito, ergue-se daquele sul que os geopolíticos já denominaram periferia, depois terceiro mundo, hoje emergentes. Esse contrapoder, no entender de Dupas , esparrama-se sobre todos os domínios das relações internacionais e desafia o poder institucionalizado no seio do capitalismo tradicional. Requisita novas formas de compreensão e explicação para as relações internacionais.
Examinemos apenas o efeito do contrapoder sobre o âmbito da negociação comercial. Desde a Segunda Guerra Mundial, a velha periferia assistia a decisões elaboradas pelos países centrais do capitalismo no seio do Gatt-OMC e propostas como regras para todas as nações. A periferia não participava da formulação, tampouco usufruía de benefícios estruturais, por certo haveria de cumpri-las. Durante a Conferência de Cancun, em 2003, inserida na rodada Doha da OMC, os países emergentes não se alçaram contra a liberalização do comércio internacional, objetivo da rodada, porém contra o modo de produzir o acordo. Em Cancun, tudo ocorreria como no passado: um consenso entre os países ricos, proposto como ordenamento nos limites das possibilidades aceitáveis por eles mesmos. A continuidade do poder. Os emergentes organizaram-se então no G20 com o fim de participar, pela primeira vez, da formulação das regras de liberalização de modo a estabelecer a reciprocidade de benefícios. Caso não fosse possível atingir a reciprocidade, bloquear-se-ia a produção de regras multilaterais para o comércio internacional. A OMC paralisouse por anos em razão da emergência do contrapoder.
O contrapoder dos emergentes desequilibra o exercício do poder internacional da antiga Trilateral, Estados Unidos-Europa-Japão, da potência hegemônia, Estados Unidos, bem como da atual coalizão estratégica entre Europa e Estados Unidos. Faz do G8, ademais, um espetáculo de impotência, mesmo que os líderes do velho capitalismo escolham um G5 de emergentes representativos para assistir a suas reuniões. O contrapoder enfraquece, enfim, todas as teorias atreladas à ordem internacional construída desde o centro e para o centro.
Não se trata apenas de observar o choque de interesses no domínio do comércio, da segurança, do meio ambiente e dos direitos humanos, como o dos migrantes, que a ordem do passado revela e as teorias animam.
Um exemplo de teorização das relações internacionais pertinente ao domínio dos valores, que correu o mundo e ainda fundamenta estudos, interpretações e processos decisórios, nos é fornecido por Samuel Huntington . Como toda teoria serve a uma cultura, o choque de civilizações serve à cultura ocidental de matriz anglo-americana. Brasil, Índia e China, entre outros países pacifistas, concebem e praticam políticas exteriores não confrontacionistas e pautam sua conduta pela convivência das diferenças culturais. Em particular, segundo Renato Ortiz, o Brasil é formado por cultura plural, oriunda de grupos sociais distintos, culturas que se transformam com o tempo . E projeta espontaneamente sua identidade multicultural sobre a visão de mundo, como nos ensina Celso Lafer . A teoria do choque de civilizações, ao sugerir o conflito ao invés da cooperação entre os povos, é avaliada pela inteligência desses emergentes como uma aberração intelectual.
Em seu livro The Central Liberal Truth: How Politics Can Change a Culture and Save it from Itself, Lawrence E. Harrison utiliza a lógica de Huntington ao perguntar-se sobre quais elementos de cultura promovem democracia, justiça social e desenvolvimento. Nesse e em outros estudos, examinou experiências de países em desenvolvimento, que elegeu como objeto de observação, e identificou mais de duas dezenas de fatores de propulsão e obstrução. Contudo, sua base de referência epistemológica prossegue sendo a cultura do Ocidente, que sobrepõe como filtro solar para captar as manifestações da cultura em países do sul e verificar sua adequação ou não a uma teoria da superioridade da cultura ocidental.
Quando se unem, Harrison e Huntington descartam o valor explicativo das interpretações que fizeram sucesso no sul, como as teorias do imperialismo, do colonialismo e da dependência, entre outras. Limpam, como se diz na gíria brasileira, a barra moral do capitalismo e embutem valores culturais do Ocidente na teoria que divulgam, como propagandistas .
Revelando atitude intelectual mais aberta e mais simpática, Alexander Wendt escala uma nova fase dessa evolução recente das teorias. Construtivista, construtivista racionalista como se apresenta a si mesmo, surpreendeu o meio acadêmico em 1999 com seu livro Social Theory of International Politics. Wendt inicia a demolição do imperialismo das teorias das relações internacionais. Essas teorias, segundo o autor, nunca foram capazes de prever algo que já não fosse uma tendência em curso. Ávido por idéias novas, não hesita em colocar em cheque por meio de seu ecletismo metodológico o conhecimento disponível para explicar as relações internacionais. O realismo, por exemplo. Existem três paradigmas de Estado, afirma: o hobbesiano, que vê os outros como inimigos, o lockeano, que os vê como rivais, e o kantiano, que os vê como amigos. Embora pretenda golpear o realismo, que opera em seu entender por meio do primeiro modelo, o argumento de Wendt permanece em certa medida tributário dessa corrente .
Para os fins desse texto, recolhemos do acima exposto uma conclusão que nos permite passar à segunda parte de nosso argumento.
No estado em que se encontram, as teorias das relações internacionais são limitadas em sua capacidade explicativa, normativa e decisória, visto que pesquisadores recentes avançam na identificação de interesses, valores e padrões de conduta de múltipla procedência que inserem em sua interpretação de modo implícito ou explícito. Entre as nações, a diversidade desses três fatores prepondera. Tal constatação objetiva torna como que impossível qualquer teoria de alcance universal. Muito ilustrativa dessa crise do conhecimento é a reação da terceira geração de teóricos da escola inglesa (Alexander Wendt, Andrew Linklater, Tim Dune e Nicholas Omuf), os quais desvendam as armadilhas escondidas por trás do tradicional conceito de sociedade internacional e de seu papel na produção de regras componentes da ordem internacional .
Do ângulo epistemológico, o construtivismo encaminhou a avaliação crítica das teorias, sem conduzir sua lógica ao termo do raciocínio. Deixou em aberto a confusão mental, por não haver estabelecido nexo de inspiração entre fatores nacionais ou regionais e elaboração teórica. A ousadia consiste em descartar de vez a pretensão universalista das teorias e limitar-se a erguer conceitos aplicados às relações internacionais. Estes não renegam suas raízes nacionais ou regionais – interesses, valores e padrões de conduta – por tal razão não se apresentam com a ambição explicativa universal das teorias.
Referências bibliográficas
- NOGUEIRA, João Pontes & Messari, Nizar. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio d e Janeiro: Elsevier, 2005.
- SMOUTS, Marie-Claude (org.). Les nouvelles relations internationales: pratiques et théories. Paris: Sciences Po, 1998.
- Ver textos de seminários publicados pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag). CERVO, Amado Luiz & Bueno, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: EdUnB, 2008.
- PAROLA, Alexandre Guido Lopes. A ordem injusta. Brasília, Funag, 2007.
- BADIE, Bertrand. L’impuissance de la puissance: essai sur les nouvelles relations internationales. Paris: Fayard, 2004.
- DUPAS, Gilberto. Atores e poderes na nova ordem global. São Paulo: Unesp, 2005.
- HUNTINGTON, Samuel P. O choque das civilizações. São Paulo: Objetiva, 2001. Ver MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Cultura e poder. São Paulo: Saraiva, 2007.
- ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. Ver CERVO, Amado Luiz. Multicultiralismo e política exterior: o caso do Brasil, Revista Brasileira de Política Internacional, n. 38 (2) , p. 133-146, 1995.
- LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. 11 HARRISON, Lawrence E. The Central Liberal Truth: How Politics Can Change a Culture and Save it from Itself. Oxford: USA Trade, 2006.
- HUNTINGTON, Samuel P. & Harrison, Lawrence E. A cultura importa. São Paulo: Record, 2002.
- WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
- SOUZA, Emerson Maione. A escola inglesa no pós-guerra fria: fechamento, tradicionalismo ou inovação? Cena Internacional, v. 8 (2), 2006, p. 29-62.
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